'Não existe segredo', diz diretor de Mogli sobre interpretar animal

CORREIO ouviu Andy Serkis sobre novo filme; ator viveu Gollum, em Senhor dos Anéis, e César, em Planeta dos Macacos

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  • Laura Fernades

Publicado em 16 de dezembro de 2018 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Netflix/Divulgação

Despido da maquiagem digital que o transformou em Gollum, no filme Senhor dos Anéis, e César, em Planeta dos Macacos, o ator inglês Andy Serkis, 54 anos, muitas vezes não é reconhecido pelo grande público. Mas quem gosta de cinema sabe que Andy está por trás dessas e outras criaturas fictícias que impressionam pela expressão facial bem próxima ao real.

Não à toa, quando se fala na técnica da captura de movimento, que é bem diferente da animação tradicional, um dos principais atores é Andy. Mas agora ele inverteu os papéis e assumiu a direção do filme Mogli: Entre Dois Mundos, disponibilizado na Netflix há uma semana e lançado no Brasil na última segunda-feira (10), durante evento para jornalistas da América Latina, realizado em São Paulo.

“Andy, qual é o segredo?”, perguntaram Christian Bale (Batman: O Cavaleiro das Trevas/2008), Cate Blanchett (Carol/2015) e outros atores convidados para atuar no filme que usa a técnica da captura de movimento. Simpático e sorridente, Andy contou ao CORREIO e a um pequeno grupo de jornalistas que a pergunta feita na primeira reunião de trabalho tinha uma resposta simples: “não existe nenhum segredo”.

“Disse a todo mundo: olha, a tecnologia é só um caminho para fazer isso. Vocês não têm que atuar de um jeito especial. No final das contas, é como colocar uma câmera em seu rosto e não uma maquiagem”, explicou Andy, que interpretou King Kong, em 2005. No elenco de Pantera Negra (2018), indicado a melhor drama no Globo de Ouro, Andy deu o primeiro passo como diretor no segundo filme da franquia O Hobbit, ao lado de Peter Jackson, cineasta responsável pela trilogia de O Senhor dos Anéis. Christian Bale interpreta Bagheera e Rohan Chand é Mogli no filme Mogli: Entre Dois Mundos (Foto: Netflix/Divulgação) Quando assumiu e anunciou Mogli, Andy conta que correu contra o tempo ao descobrir que a Disney também teria a sua versão, lançada em 2016. Mas pisou no freio ao constatar que seu filme tinha perigos reais e era “mais sombrio” que a “versão família” da concorrente.“Não queríamos dizer para o público: está tudo bem, vamos cantar uma música e esquecer de tudo. Precisávamos de uma versão emocionalmente verdadeira, bem mais sombria”, garante.Confira os destaques da conversa com Andy, que revela quais foram os principais desafios que enfrentou em Mogli, inspirado no livro do escritor britânico Rudyard Kipling, de 1894; fala sobre as mudanças no cinema, com o surgimento do streaming; e sobre o conflito homem x natureza. “Soa contemporâneo. Esse medo do outro é algo que está crescendo no momento, com tudo isso que está acontecendo com o populismo”, destaca.

O que te atraiu na história de Mogli, foi o fato de ter vivido tantos animais? Acho que fui atraído por isso, porque mantenho isso como tema em minha vida: personagens marginalizados como Gollum, César, King Kong. Além disso, venho de duas culturas: meu pai era de origem armênia e minha mãe inglesa, então eu transitava entre duas culturas e reconheço isso como parte do minha investigação pessoal. Na primeira vez que li o roteiro, reagi de forma intensa ao que era central naquela versão que remete ao livro sobre um garoto marginalizado que está no limite de uma jornada para encontrar o seu centro. Bom, acho que essa é a resposta curta após vários anos de terapia (risos)

Mogli continua atual? O livro soa contemporâneo, porque existem muitas pessoas que se sentem nesse lugar de não pertencer a uma cultura só, ou de estar fisicamente se mudando - como os refugiados. Acho que essa história toca nisso. Ela mostra o tipo de homem que é colocado em uma gaiola, apedrejado pela aldeia...Parece tão real para mim esse medo do outro, algo que está crescendo no momento, com tudo isso que está acontecendo com o populismo. Ou seja, esse constante desejo de ver o que vai nos separar, no lugar daquilo que nos aproxima, soa contemporâneo.Você deu dicas ou aulas para os outros atores de como interpretar um tigre ou uma cobra? Com todos os atores que escolhemos, sabíamos que queríamos explorar uma parte deles que não tinha sido usada antes. Mas quando todos nós sentamos em uma mesa para a leitura, eles disseram: “Andy, qual é o segredo”? Aí eu disse: não existe nenhum segredo. Vocês estudam o animal que vão interpretar, observam, assistem a documentários. Mas não só o comportamento genérico, como a forma como o animal se move e senta, mas: ‘o que esse personagem representa?’. Cate Blanchett interpreta a temida serpente Kaa (Foto: Netflix/Divulgação) E a tecnologia...? Disse a todo mundo: olha, vocês criam um personagem e a tecnologia é só um caminho para fazer isso. Vocês não têm que atuar de um jeito especial. Se transformem naquele personagem. Então, no final das contas, é como colocar uma câmera em seu rosto - que grava em 360º - e não uma maquiagem. A maquiagem é digital. Esse foi o meu conselho, o resto foi só trabalhar nas cenas de um jeito convencional. Foi emocionante, nas primeiras semanas, ver todo mundo ali atuando junto. E tem uma parte que eu queria que vocês tivessem visto, que é quando você olha as performances do primeiro dia e vê, cinco dias depois, a fidelidade da performance que eles deram. É o mais importante disso tudo.

Por que essa técnica te atrai? Porque é sobre interação, sobre a conexão com atores reais e é muito diferente da animação. Animação é voz, é você de pé, lendo páginas do roteiro. Não estou menosprezando, a animação é criativa do seu jeito, mas isso aqui é filmar ao vivo, com todos os ângulos da câmera e tudo o que você pode tirar da performance. Então, para mim, não existiria nenhum outro jeito de fazer esse filme.

Existe diferença entre esse tipo de produção e a tradicional, no streaming? O cinema está mudando. As pessoas não estão indo ao cinema tanto quanto antes. A grande questão de um streaming como a Netflix é que esse filme está sendo visto, enquanto nós conversamos, por 190 países. Quando pensamos em fazer uma versão diferente de Mogli, isso não se encaixou com o modelo blockbuster de bilheteria. Especialmente tendo saído uma “versão família” [da Disney] dois anos antes. Nossa versão é mais sombria, então, por definição, esse filme talvez não fosse tão visto.Agora que o streaming é entendido como modelo no mundo, existe esse desejo de ter as duas coisas que não precisam ser necessariamente excludentes. Algumas pessoas adoram ver versões 3D - que, pessoalmente, é a minha versão favorita desse filme - e no futuro talvez exista um mundo onde algumas pessoas queiram assistir no cinema e outras queiram assistir em casa, porque é mais barato ou pela experiência em família. Em breve, vai existir um momento onde todas essas possibilidades vão acontecer. Rohan Chand interpreta Mogli e Naomie Harris é Nishi (Foto: Netflix/Divulgação) Qual foi o maior desafio que enfrentou em Mogli? Sem dúvida, o maior desafio foi escolher como desenhar os animais e definir um estilo para eles que parecesse real, mas que também refletisse a performance dos atores. E chegar até isso foi uma grande parte do trabalho. Foram anos, porque se você fizer errado, fizer eles muito humanos, fica estranho. O maior desafio foi a precisão de fazer isso não só no design, mas em cada uma das 2.200 tomadas com efeitos especiais - porque em diferentes ângulos, os rostos são totalmente diferentes.

Pode nos ajudar a compreender Kaa, essa serpente gigante que aparece no filme? Kaa é a criatura mais temida da selva, porque ela basicamente pode matar qualquer outro animal e engolir ele. Mas o que ela representa, em nossa versão, é como se fosse o espírito antigo da floresta. Mas ela não faz parte da comunidade, ela é sozinha, é uma entidade que se autopreserva e tem a capacidade de sentir o passado e o futuro da floresta. A forma como se relaciona com Mogli é sempre empurrando ele para se tornar um líder, o salvador da floresta, mas apenas para se proteger. Ela não está pensando na comunidade, ela quer que a floresta sobreviva para que ela sobreviva.

Mogli e César estão inseridos em histórias que mostram o conflito homem x natureza. É uma coincidência? De alguma forma, todos eles estão lidando com homens que acreditam ser as mais importantes espécies do planeta. Com certeza isso aparece fortemente em Mogli e, por isso, ele tem o potencial de ser um representante da paz, porque ele tem empatia pelos dois mundos e é capaz de entender os dois mundos. Acho que nós precisamos um pouco mais disso.

*A repórter viajou a São Paulo a convite da Netflix