Nas noites em que não durmo

Sobre os sonhos e a insônia pandêmica que não nos permite dormir em paz

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  • Da Redação

Publicado em 24 de abril de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

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Por razões que a ciência explica, coisa rara é lembrar um sonho inteiro. Sinto que sonhei pelo que vibra no corpo: sensação de paz ou de incômodo. Nunca recordo mais que levemente qualquer trecho. Durmo pouco, é certo. Dormi pouco a vida toda. Fui um bebê insone e, por conta disso, atravessei a infância indo a médicos. 

Na adolescência, e parte da juventude, esse “defeito estimulou noites de farras e estudos. Na maturidade, acentuou-se, ficou mais intenso. Desde março do ano passado, quando chego à janela de madrugada, pelas luzes acesas na miríade de prédios, reparo que agora somos muitos. Cada um de nós encara a insônia de seu jeito. 

O vizinho do apartamento em frente, por exemplo, fica debruçado na varanda longas horas, dorso nu, fumando cigarros. Os contornos de seu corpo branco e magro, contra a escuridão da sala de visitas, lembram os de um fantasma. Ilusão de aura, ilusão de ótica. Até ser um pouco mais adulta, tive medo do escuro. 

Na fazenda de meus tios, noites à chama de uma vela. Em casa, lâmpadas acesas. Se faltava luz na rua, candeeiro. De vez em quando, o vizinho insone nota que também estou acordada e que o observo. Então faz um breve aceno simpático, que nunca respondo — solidário no compartilhamento da noite gigantesca. 

Eu o observo. E há um momento em que ele solta um pigarro, confere o relógio de pulso, estica os braços até o alto da cabeça e boceja. Sumo de seu campo de visão e, já em meu quarto, repito os mesmos gestos, forjando desajeitado duplo. Nas noites em que não durmo, costumo escrever, ler e ouvir músicas.  

Até ser um pouco mais adulta, tive medo das pessoas. Rostos estranhos, rispidez. Timidez constrangedora. Até ser um pouco mais adulta, não muito. Medo de existir, medo de amar, medo de tudo. De tudo que pudesse me ferir, ou desnudar. Porque o mundo sempre me pareceu um lugar muito estranho, para além dos livros. 

Um lugar muito estranho mesmo. Dia desses minha irmã contou um sonho. Não foi como os outros sonhos dela, este foi repleto de significados. E eu o guardei para mim, como se fosse meu, tomei de empréstimo. No sonho, a minha irmã voltava aos 17, como no poema de Violeta Parra, que tão lindamente Mercedes Sosa cantava. 

E, então acordada, referências mágicas foram se somando à narrativa onírica. A leitura de uma crônica, “Voltar à inocência”, escrita por Tércia Montenegro, que também cita essa música. O poema de Nicanor Parra em defesa da irmã. A ideia de retorno a um lugar dentro de nós. E um sonho emprestado, enquanto não se pode sonhar em paz.

*Kátia Borges é escritora e jornalista