Neurocientista quer recuperar a importância dos sonhos para evolução humana

Em O Oráculo da Noite, Sidarta Ribeiro propõe exercícios simples para lembrar dos sonhos e passar a levá-los em conta no dia a dia

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  • Da Redação

Publicado em 6 de novembro de 2019 às 05:50

- Atualizado há um ano

Sidarta Ribeiro, um dos maiores neurocientistas do país, acredita que a humanidade está em um beco sem saída evolutivo, e que para escapar dele é preciso recuperar a capacidade de sonhar. "Os sonhos orientaram a vida humana até ontem", diz o professor e diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que acaba de lançar o livro O Oráculo da Noite: a História e a Ciência do Sonho, da Companhia das Letras.

Aos 48 anos, Ribeiro é reconhecido por sua pesquisa em torno do uso de substâncias psicoativas, em especial a cannabis, mas o que se vê no livro é resultado do trabalho de uma vida inteira, despertado a partir de uma uma experiência familiar vivida aos cinco anos de idade. Foi aos 30, durante o doutorado nos EUA, que transformou os sonhos em objetos de pesquisa. Na época, ele sentia muito sono, e sonhava muito. Chegou a pensar que seria desligado da universidade por conta disso. Meses depois, se deu conta que "aquilo que parecia uma desadaptação, uma sabotagem até, na verdade era o processo adaptativo e necessário para o enquadramento de uma nova realidade".

Agora, propõe uma combinação surpreendente entre a sabedoria ancestral e a biologia do século 21, de modo a recuperar a importância —e talvez mesmo a centralidade— dos sonhos para a mente humana. Dentre as inúmeras teses presentes no livro, a de que parte dos problemas da civilização moderna, mais ou menos nos últimos 500 anos, é termos deixado de levar os sonhos em conta. 

Para ele, os sonhos não são apenas ativações aleatórias dos neurônios durante o sono, mas funcionam principalmente como “simulações probabilísticas de eventos passados e expectativas futuras”. São fundamentais para a criatividade e para as ações do mundo desperto. Tanto assim que defende o sono como um grande aliado do aprendizado escolar, e sugere que as instituições de ensino infantil reservem um tempo para isso. 

A narrativa de Ribeiro tem a ambição de amarrar, de um lado, a história evolutiva do sono e dos sonho e, de outro, sua história humana. Um caso raro e excepcional de cientista que consegue traduzir para o público geral suas pesquisas. Por meio de uma linguagem acessível, o neurocientista transformou conceitos complexos em imagens simples, caminhando por temas como evolução, sonho, sono e morte. 

Na entrevista a seguir, ele explica que os sonhos são materiais informativos sobre a estrutura da mente de quem sonha, e podem servir como um "oráculo probabilístico", capaz de predizer o futuro com precisão. Para ele, é possível treinar a mente para determinar com o que sonhar, através de autosugestão, antes de dormir. "Isso foi feito ao longo da história humana quase o tempo todo. Quem parou de prestar atenção nos sonhos fomos nós, ocidentais, pós-industriais", afirma. (Foto: Elisa Elsie/ Divulgação) Esse livro é resultado de muitos anos de estudo, feito em paralelo a suas pesquisas sobre substâncias psicoativas, pelas quais é ainda mais reconhecido. Quando foi que os sonhos se tornaram um objeto de estudo para você?

 Os sonhos começaram a me interessar como objeto de pesquisa no início do doutorado, quando eu cheguei em Nova York em 1995. Eu cheguei em janeiro, nevava, e eu não conhecia quase ninguém. Tive uma tremenda dificuldade de adaptação, de não conseguir entender nada. Sabia inglês, mas não entendia o que as pessoas falavam, não entendia o conteúdo, porque as aulas eram mais avançadas, e eu estava muito por fora do assunto. E me dava um sono louco! Eu ia para os lugares e dormia, inclusive no laboratório. Isso foi ficando cada vez mais constrangedor, e depois de um tempo eu parei de lutar contra isso, e resolvi dormir o quanto o corpo pedisse. Teve período de eu dormir 16 horas por dia, o dobro do indicado. Sonhava sem parar, e ficava pensando que meu corpo estava me sabotando. Minha impressão é de que eu seria chutado para fora da universidade. Isso durou dois meses e meio, mas em março, quando chegou a primavera, de repente tive uma reversão completa. Passei a entender os textos, a apresentar seminários, fiz amigos, passei a trabalhar em três laboratórios, e a vida ficou ótima. E aí eu me dei conta que aquilo que parecia uma desadaptação, uma sabotagem até, na verdade era o processo adaptativo e necessário para o enquadramento dessa nova realidade. E aí eu fiquei me perguntando porque isso aconteceu, mas ninguém sabia explicar. Então, decidi que ia estudar isso.

No livro, você recomenda diversos exercícios e adoção de hábitos cotidianos para mehorar a qualidade do sono e recuperar a capacidade de sonhar. Um deles é o sonhário, que nada mais é que um diário de sonhos. Ele é mesmo capaz de reconectar-nos a essa dimensão?

Certamente! Tenho feito esse experimento, e o retorno é garantido. É importante que as pessoas façam o pequeno roteirinho que eu indico no livro, que é pensar no sonho antes de dormir, fazer uma autosugestão de que vai lembrar e relatar esse sonho pela manhã, e ao despertar não se mexer de forma agitada, levantar calmamente. Isso tudo tem um efeito enorme, porque sonhar é uma capacidade biológica do nosso corpo. É como se você redescobrisse algo vital como respirar, como comer. É uma coisa natural. Sonhar é algo que faz parte do nosso hardware. E a gente perde a capacidade de se lembrar dos sonhos porque quando a gente termina o sonho, nosso cérebro tem níveis muito baixos de noradrenalina, que é um mediador químico importante. Então, quando você acorda e vai fazer outras coisas, você perde essa capacidade de lembrar. A noradrenalina não é liberada durante o sono REM, que é o sono em que a gente sonha. A pessoa normalmente levanta, vai escovar os dentes, tomar café. Quando a noradrenalina finalmente chega, ela encontra o espelho do banheiro, o banho frio, a cafeteira. Ou seja, um monte de estímulos, que vão reforçar essa percepção do estímulo, e afastar a lembrança do sonho, que se perde. Mas se a pessoa fica quietinha na cama, tentando lembrar, a noradrenalina vai chegando, ficando mais forte, e começa a puxar um fio de novelo de memória que veio nos últimos 15 minutos e até mesmo na última hora. E aí, ela consegue escrever dez páginas toda manhã. Isso acontece com todo mundo que se propõe a fazer isso, com três, quatro dias de exercício. É rápido! (Foto: Reprodução) E o sonhário é a forma mais fácil de fazer isso?

Sim, esse método é muito simplificado. Você pode encontrar coisas muito mais complicadas, e poéticas, e metafóricas na cultura afro-brasileira, na cultura indígena de vários tipos. Tem muitas formas muito mais complicadas, e certamente mais ricas que esse exercício. O sonhário é uma receita mínima, que todo mundo pode fazer, com ou sem crença. Agora, existem alguns outros hábitos que podem interferir nisso. Por exemplo, a pessoa que bebe álcool antes de dormir, ela tem uma facilidade de cair no sono, mas vai tendo dificuldade de chegar na parte mais profunda do sono. A fase REM vem na segunda metade da noite. Então, se a pessoa bebe muito antes de dormir, ela nem chega na fase REM, ela de fato não sonha. A melatonina, que é um hormônio produzido naturalmente pelo corpo humano,  é muito benigna para a indução do sono. Só que as pílulas para dormir, elas não são exatamente indutoras de sono, elas são mais indutoras de um apagar do cérebro, de um desligar do cérebro. Isso é na verdade a amnésia. A pessoas não se sente descansada, se sente exausta. Não é recomendável. Outras questões dizem respeito aos hábitos: se essa pessoa ficou acordada até 4h da manhã na tela, esperando o sono chegar, ela está tomando o caminho contrário, porque a própria tela mantém ela desperta. Há a estimulação da noradrenalina, a pessoa fica alerta, e a luz de comprimento azul inibe a produção de melatonina natural, que o próprio cérebro produz.  "Ainda que diversas substâncias possam induzir o sono, poucas conseguem emular de forma convincente a experiência onírica"O mesmo vale para as pessoas que tomam remédio para dormir?

As pessoas que tomam remédio para dormir é a mesma coisa. A gente transfomou uma coisa que foi sagrada, que foi preciosa e últil há centenas de milhões de anos para diversos mamíferos (não só primatas) em uma coisa quase que banal. Quase que banal, não, a gente banalizou ao extremo. As pessoas não falam mais dos sonhos no café da manhã, na escola, no trabalho. Quando a gente fala em sonho, é do desejo no mundo da vigília, algo que diz respeito à aquisição, ao consumo. Se você parar uma pessoa na rua e perguntar a ela qual o seu sonho, ela vai dizer que é a casa própria, que é o carro. O sonho era sagrado para todas as civilizações que vieram até o capitalismo. Isso foi feito ao longo da história humana quase o tempo todo. Quem parou de prestar atenção nos sonhos fomos nós, ocidentais, pós-industriais.

Nunca tinha pensado nessa reapropriação linguística do termo sonho como algo maravilhoso a ser conquistado no mundo real, quando na verdade os sonhos podem ser bem intranquilos. Muitas vezes, acordamos sobressaltados dos sonhos, que mais se assemelham a pesadelos. Inclusive, qual a diferença entre um e outro?

Originalmente, a 200 milhões de anos atrás, os sonhos eram pesadelos. Porque tudo era extremamente perigoso, tudo era extremamente difícil. Todo dia era preciso sair, procurar alguma coisa para comer, matar e procriar. Os três imperativos darwinistas, da evolução: todo animal, todo dia, tem que enfrentar a vida e a morte. Isso só começou a mudar recentemente, com o desenvolvimento da cultura e dos muitos confortos que nos tiraram desse enfrentamento diário pela vida e pela morte, embora a gente ainda precise sobreviver. A gente não está mais no mundo das três grandes necessidades, mas das milhares de pequenas necessidades. Esse oráculo probabilístico começou a surgir na época em que só tínhamos só esses três grandes problemas. Imagine uma capivara, que um dia foi ameaçada por um jacaré. Na hora em que ela vai dormir, cada memória daquela iminência de ataque, extremamente forte, vai ser reativada. Essas emoções vão se processadas, ela vai ter um pesadelo, vai acordar sobressaltada e vai ter medo de voltar naquele lugar. O comportamento dela na vida real muda por conta daquela lembrança do sonho. Em função daquele ataque do jacaré, que se efetivou só no sonho, hoje ela não volta naquela lagoa. O sonho teve um efeito no futuro. Aquela capivara sobrevive, não bebe mais água naquela lagoa, e aí você começa a ter um oráculo probabilístico. Uma simulação do que pode ser amanhã, a partir de uma simulação de ameaça vivida durante o sonho da noite anterior. O medo de uma coisa ruim foi um dos motores da evolução do sonho nos mamíferos. Só que nós seres humanos não temos só três grandes problemas, nós temos muitos outros, então o oráculo deixou de ser claro para ser um oráculo colcha de retalhos, que dificilmente é tão preciso assim, exceto quando você está vivendo uma situação de vida ou morte. Quando você tem um grande desejo ou um grande medo na frente.

Nesse momento complicado na política, sobretudo na época das eleições, vi muitas pessoas reclamarem de insônia, de pesadelos relacionados a isso...

As pessoas estão se sentindo ameaçadas, então quando as pessoas se sentem assim, a gente está de volta a esse mundo de vida e morte.  

Por fim, queria que você comentasse esse exercício que você faz no livro de tirar o sonho de uma dimensão individual e ligá-lo a uma possibilidade de futuro coletivo melhor.

O sonho teve um papel central na evolução humana. Ele contribuiu para a narrativação dessa simulação de futuro desde os nossos ancestrais. Nas outras espécies animais, o sonho é um oráculo, justamente porque faz essa predição de futuro; probabilístico, porque não é certeiro, preciso; e individual, porque os animais não têm linguagem, não conseguem contar um para o outro dos seus sonhos. Com o desenvolvimento da linguagem pelos humanos, a gente começa a poder contar o que viveu na vigília e nos sonhos, e a criar uma mitologia comum. A gente começa a compartilhar coisas como onde vivem nossos ancestrais, as pessoas que já morreram. Tem gente que chama isso de o grande elã. A gente começa a chamar esses ancestrais de entidades, de caboclos, de espíritos, de deuses. Criamos  uma narrativa sobre o mundo, que também envolve um mundo imaginário, vivido no sonho, que é na verdade um grande portal de comunicação com o mundo. Tudo isso começou no paleolítico, na caverna, e está aqui até hoje. Um hardware de milhares de anos, com softwares culturais recentíssimos. Os sonhos foram fundamentais nesses processo, em toda a história - na Mesopotâmia, no Egito, em todas as civilizações antigas eles estão lá como fonte de pesadelos, como sonhos premonitórios, como portal de comunicação sobre o que fazer. Nós nos orientamos pelos sonhos até ontem, até em torno de 1500. Quando a Revolução Industrial acontece, ele para de ser preponderante nas decisões da classe dominante, mas continua sendo muito importante para as classes mais baixas. Embora, não se tenha isso tão estruturado como em comunidades onde há um xamã, que acorda e já começa a contar os sonhos de toda aldeia... A gente trocou essa máquina de conhecer o futuro que, embora cega, vai acertando mais que errando, e ficou só com a técnica, com a lógica da grana. O sonho erra, mas ao fazer isso, ele também acerta. Talvez a nossa imensa capacidade de destruição e criação acumulada até agora só possa ser equilibrada quando recobrarmos a capacidade de sonhar junto com a técnica racional. É preciso juntar isso, fazer uma síntese, para encontrarmos o caminho do futuro. Como é possível que com tanta técnica, com tanto poder, estejamos nesse grau de destruição? Eu acredito que tenha a ver com a perda da capacidade de sonhar, ou seja, de simular as consequências dos nossos próprios atos.

FICHA O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho Autor Sidarta Ribeiro Editora Companhia das Letras Quanto R$ 39,90 (ebook); 488 págs.