Ney: 80 anos de sexo, drogas e outras transgressões

Biografia do jornalista Julio Maria conta em ritmo de romance muitos detalhes da vida ímpar do cantor

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  • Ronaldo Jacobina

Publicado em 8 de agosto de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Luiz Fernando Borges/divulgação

Quando completou 40 anos, o cantor Ney Matogrosso fez uma previsão: “Pode ser que continue ligado à arte, mas não fazendo esse tipo de coisa (cantar). Não quero ficar velhinho cantando. A voz, com o tempo, perde o vigor. Quero deixar nas pessoas uma imagem  bonita e alegre”. A profecia, para sua sorte, e a nossa, não se confirmou. Ney completou 80 anos no dia 1º de agosto, não apenas com a imagem bonita e alegre, que em nada lembra um velhinho, como está cantando cada vez melhor.

E cheio de energia. O artista, que está com um novíssimo álbum  Nu Com a Minha Música - prestes a ser lançado, acaba de ganhar uma biografia Ney Matogrosso - a Biografia, escrita pelo jornalista Julio Maria, que chega às livrarias pela Companhia das Letras, com quase 500 páginas carregadas de histórias que transportam o leitor para as trilhas seguidas pelo artista. Ao longo do relato que quase sempre segue uma ordem cronológica, a obra provoca no leitor emoções, mesmo para os não fãs, que podem oscilar entre lágrimas e risos.

Na busca para desvendar um dos maiores monstros sagrados do showbiz brasileiro, o autor refaz os caminhos do seu personagem desde a casa em que ele nasceu em Bela Vista do Mato Grosso do Sul; segue para a vila militar em que viveu a conturbada adolescência com o pai - que não sabia lidar com o jeito “diferente” do filho - em Campo Grande; e passa pelo quartel da Aeronáutica onde ele serviu como soldado no Rio de Janeiro.

Nas suas andanças, Julio Maria, que já provou ser um bom biógrafo quando escreveu Elis Regina – Nada Será Como Antes (obra que lhe rendeu o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte - APCA, em 2015), encontrou um irmão mais velho de Ney, do qual a família não tinha notícias, e levantou documentos que revelam a vigilância dos Secos & Molhados, durante a ditadura militar.

Para o público que pouco sabe do Ney de Souza Pereira - que sempre se manteve resguardado por trás da fantasia do artista Ney Matogrosso, e recusou rótulos - conhecer este cidadão pelo olhar de outra pessoa poderia gerar desconfiança, mas o trabalho de apuração preciso e criterioso, que custou ao autor cinco anos de pesquisa e mais de 200 entrevistas, não deixa dúvidas de que se está diante de um primor de obra literária.

Seja pelas histórias reveladas com precisão quase cirúrgica, seja pela narrativa bem construída que cobre desde a infância do personagem, passando pela fama, pelos autos e baixos da carreira, pelos bastidores da indústria fonográfica e até a busca pelo autoconhecimento. Vale dizer que Ney quase nunca permitiu que produtores intervissem nas suas escolhas, mesmo que muitas vezes tenha pagado o preço por suas decisões nem sempre condizentes com o voraz mercado de música.

O jornalista Julio Maria assina a biografia (Foto: Renato Parada/Divulgação)  Total liberdade

Embora seja uma biografia autorizada – o escritor esteve com Ney, presencialmente ou por telefone, incontáveis vezes entre 2016 e 2021 – o biografado fez apenas uma exigência ao autor: que não publicasse mentiras.

A total liberdade permitiu que Julio Maria deitasse e rolasse, no bom sentido, com as preciosas informações que levantou e revelasse detalhes íntimos do seu personagem. Desde nomes de artistas que teriam dividido a cama com Ney, como o ator Leonardo Villar (1923-2020) e a cantora baiana Simone, até suas preferências sexuais com pessoas do mesmo sexo. As muitas experiências com drogas, presentes na vida do astro durante muitos anos, também estão ali, tintim por tintim, descritas no livro.

Como num romance bem construído, o livro passeia pela trajetória do personagem que saiu da casa dos pais ainda adolescente para enfrentar um mundo desconhecido que o levou a dormir na rua, encarar a fome e fazer sexo com muitos desconhecidos - homens e mulheres. Tudo nos moldes hippie comuns nos anos 1960.  Estilo de vida que, por sinal, o artista adotou até depois dos 30 anos quando perambulou pelas ruas de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, criando acessórios que vendia nas ruas até virar aderecista de teatro com o objetivo de trilhar a carreira de ator.

Secos & Molhados

O teatro até que lhe abriu as portas para a atuação, mas Ney acabou virando um pop star mesmo quando, ao lado de Gerson Conrad e João Ricardo, chocou a tradicional família brasileira dos anos 1970 e atiçou a ira dos militares quando surgiu travestido, ou melhor, quase nu, rebolando no conjunto Secos & Molhados - que teve uma meteórica carreira.

O capítulo Secos & Molhados, embora já explorado por outros biógrafos, ganha novos ingredientes com informações obtidas pelo autor direto das fontes que circulavam pelos bastidores, além dos próprios envolvidos. O desfecho, segundo o escritor, se deu pela ganância de João que, ao contrário do vocalista, tinha muito apego ao dinheiro, enquanto Ney não tinha talento para fazer conta.

Desprendido e generoso com todos ao seu redor, mesmo no auge do sucesso, o artista não tinha nem conta em banco. Carregava tudo o que lhe rendia (em espécie) para  casa e deixava os pacotes de cédulas expostos dentro de um saco no seu quarto, para que os muitos amigos que entravam e saiam de lá, pegassem a quantia que precisassem.

Embora compulsivo por sexo e adepto do amor livre, Ney teve três grandes amores ao longo da vida: Zé, um jovem de família tradicional carioca cujo sobrenome não é revelado; o cantor e compositor Cazuza (1958-1990); e o médico Marco de Maria, com quem viveu, livremente, 13 anos. Todos vitimados pela aids que, entre os anos 1980 e 1990, levou também praticamente todos os seus grandes amigos.

Num período de uma semana, Ney chegou a ir a três enterros, o que o fez acreditar que também estaria contaminado, o que não se confirmou, embora a imprensa marrom da época tenha estampado “sua doença” nas primeiras páginas.

Com exceção de Zé, que a família escondeu inclusive o nome da doença que o levou, Ney esteve, até o final, ao lado dos seus amores: para Cazuza, levava diariamente leite de cabra de seu sítio, que o filho de Lucinha Araújo adorava; e chegou a levar Marco, já em estágio avançado da doença, para cuidar, na sua casa, até o último dia.

Gênios fortes 

O livro traz ainda revelações curiosas como a resistência inicial de Elis Regina ao artista, confirmada numa conversa, por telefone, de Ney  com o então marido da cantora, o músico César Camargo Mariano. Ney ligou da gravadora para convidá-lo a trabalharem juntos, quando a gaúcha gritou, pra que todos que estava no estúdio do outro lado da linha escutassem: “E agora você vai ficar aí tocando com viado, p....!”.

É, a Pimentinha – apelido de Elis - não brincava! Mas no caso de Ney, os dois se reconciliaram quando dividiram o palco num festival e a cantora o convidou para ir até o seu apartamento no hotel onde estavam hospedados. Embalados por álcool e drogas, selaram as pazes. No dia seguinte, a artista deixou um bilhete (reproduzido no livro) embaixo da porta do colega onde falava do seu encantamento por ele e abrindo caminho para uma amizade que não se concretizou porque a artista morreria dali a três meses.

Fato pouco incomum em se tratando de biografia, Ney Matogrosso  é um daqueles livros que o leitor não consegue largar, tal a fluidez do texto, a escrita precisa e a riqueza de histórias relevantes do personagem que percorre todas as oito décadas de vida. Independente de se gostar ou não do artista, sua trajetória de vida é extraordinária.

“Leitura emocionante, Julio Maria vai fundo no retrato do artista que marcou para sempre a vida brasileira. […] O namoro com Cazuza, a força com que Ney assistiu à morte de tantos namorados e amigos pelo vírus da aids, as atuações em teatro na juventude e em cinema na maturidade, a dignidade e sabedoria de sua aproximação e chegada à velhice (que nele nunca parece combinar com esse nome), tudo no livro mostra um ser humano fascinante, que engrandece a percepção da nossa vida como sociedade.” Caetano Veloso assina a orelha do livro Ney Matogrosso – uma Biografia

Autor  Julio Maria

Editora  Companhia das Letras

Número de páginas 480

Preço  R$ 89,90

E-book  R$ 39,90