No lugar de ir para o lixo, embalagens ganham vida como utensílios domésticos e até mesmo arte

Reciclagem e reúso são alternativas sustentáveis para o que seria descartado

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  • Donaldson Gomes

Publicado em 19 de dezembro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Nara Gentil/CORREIO

No mercado de consumo, a prioridade na hora de pensar numa embalagem é a capacidade que ela tem de ajudar a vender o produto. Mas no mundo da economia circular, embalagem boa é aquela que não precisa ser jogada fora, feita pensando em seu reuso, ou aquela que facilita o processo de reciclagem e reinserção no processo produtivo. É o pote de requeijão ou extrato que vira um copo, o de azeitona que se torna um açucareiro, a garrafa pet que vira um porta-lápis, jarro de plantas, ou qualquer outra coisa que a imaginação permitir. 

Neste processo irreversível no design de embalagens, passa-se a pensar se aquela cor atrativa, que vai dificultar a reciclagem, é mesmo necessária. Se a matéria-prima usada atende às necessidades de conservação do produto e favorece o processo de venda, mas também o pós-uso. Tem camadas sobrepostas que dificultam reciclagem? A tampa garante a vedação nos usos posteriores ao inicial? 

E não apenas isso, cada vez mais se pensa na quantidade de energia e água necessárias para se produzir recipientes, invólucros ou qualquer outro tipo de proteção ao produto.  Antoine Lavoisier, considerado o pai da Química, foi eternizado pela célebre lei da conservação da matéria: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Pois bem, depois de quase três séculos ignorando a máxima, os processos de produção de embalagens se voltam para os princípios da economia circular. Reaproveitar é o caminho para uma viagem bem sucedida em direção a uma vida sustentável. 

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Os dados mais recentes sobre o assunto mostram que a sociedade iniciou essa trajetória, apesar de ainda haver uma longa estrada por percorrer. 

Menos da metade dos consumidores brasileiros dizem verificar sempre ou às vezes se os produtos que adquirem foram produzidos de forma ambientalmente correta, indica um levantamento realizado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em 2020. A pesquisa ainda revela que houve um aumento na consciência em relação à destinação de resíduos. O número de pessoas que separa o lixo para a reciclagem cresceu de 47%, em 2013, para 55% no ano passado. Olhando o número por outro lado, 45% das pessoas ainda deixam de fazer essa separação. 

Setor produtivo O setor produtivo vem avançando na pauta. Três em cada quatro indústrias já desenvolvem algum tipo de iniciativa de economia circular, aponta outro estudo da CNI. Em alguns casos, as empresas adotam as práticas mesmo sem saber que elas se enquadram no conceito. Entre as principais práticas estão a otimização de processos (56,5%), o uso de insumos circulares (37,1%) e a recuperação de recursos (24,1%). A pesquisa também mostrou que 88,2% dos entrevistados avaliaram a economia circular como importante ou muito importante para a indústria brasileira.

As principais motivações para a adoção de práticas circulares foram a busca por eficiência operacional, apontada por 69,2% das empresas, seguida pela oportunidade de novos negócios (41,5%) e, em terceiro lugar, com 20,8% das respostas, foram as solicitações dos clientes. 

A produção de aço é um exemplo emblemático dos avanços no setor em direção à circularidade. Nono maior produtor mundial, o Brasil gerou 18 mil toneladas de coprodutos e resíduos em 2019. Deste total, 94% foram reaproveitados no processo produtivo ou em outros setores, como o cerâmico. 

No Grupo Raymundo da Fonte, uma das prioridades em inovação da marca foi justamente a embalagem de Brilux. Além de tampas abre-fácil e bico dosador, a água sanitária ganhou uma nova embalagem, completamente reciclável e com redução de 42% no volume de plástico. “Estamos constantemente buscando criar soluções que aliam oportunidades econômicas com benefícios para nossos consumidores e o meio ambiente. Mais do que uma mudança da embalagem, queremos cada vez mais trazer soluções sustentáveis”, detalha Renata Carvalho, gerente de Marketing e Trade das Indústrias Reunidas Raymundo da Fonte.Neste caminho, o Grupo Raymundo da Fonte já financiou a reciclagem de 4,6 mil toneladas de plástico. A iniciativa é realizada desde agosto de 2019 em parceria com o projeto socioambiental EuReciclo, que conecta a indústria às cooperativas de reciclagem, gerando renda e sustentabilidade através da coleta, triagem e destinação de embalagens descartadas.

Em outra ponta, o grupo instalou coletores  de embalagens usadas em alguns supermercados de Salvador e Recife, numa parceria com a TrashIn, startup especializada na gestão de resíduos.  Brilux instalou postos para coleta de embalagens em supermercados de Salvador e Recife (Foto: Divulgação) Outro exemplo, a fabricante de bebidas Ambev lançou em 2018 um conjunto de metas de sustentabilidade, que prevê, entre outras coisas, que até 2025 todas as embalagens de seus produtos serão 100% retornáveis ou majoritariamente feitas de conteúdo reciclado. No ano passado, 80% da produção de Guaraná já era feita em embalagens 100% recicladas.  

Entre as iniciativas mais recentes, está uma parceria com a growPack, para conectar ainda mais inovação para uma mudança estrutural no futuro das embalagens.  A startup detém uma tecnologia regenerativa que possibilita o desenvolvimento de embalagens fabricadas com compostos orgânicos da própria natureza. As duas empresas firmaram parceria para a viabilização de um projeto piloto.

Outro olhar O escritor, consultor e especialista em design para sustentabilidade, André Carvalhal aponta as empresas de alimentos como as maiores responsáveis pela poluição no mundo. Para ele, isso indica a relação dos produtos utilizados com diversos problemas ambientais, como a poluição dos oceanos, aterros sanitários ou lixões. Ele cita como exemplo o plástico, cujo uso inadequado acabou tornando qualidades em defeitos. 

"O plástico é um material supereficiente, duradouro, com diversas qualidades, mas criou um enorme problema com a indústria dos descartáveis", avalia. 

Carvalhal destaca que a noção do problema que foi criado tem levado empresas, governos e organizações da sociedade a buscar uma melhor utilização dos recursos.  "A gente vem de uma formação onde o design estava muito preocupado com a beleza e a funcionalidade, mas muito pouco com a origem e o pós-consumo dos materiais", lembra André. Ele conta que o pensamento na economia linear é a de que o profissional deixava de ser responsável pelo produto depois de colocá-lo no mercado.“Hoje, cada vez mais está claro que o papel é pensar em tudo isso. Gerar lixo é um grande desserviço para a humanidade”, diz. O desenvolvimento de uma economia circular tem como grande desafio a descentralização do uso. “Hoje temos uma série de produtos que são recicláveis, mas o ciclo até o consumidor final está aberto, o que dificulta a reinserção”, acredita. 

“Entre pensar no uso de materiais pela sua origem, ou pela possibilidade de reuso ou reciclagem, o ideal é pensar como economia circular. Muito mais do que uma forma de produção, é uma maneira de pensar, onde as coisas não chegam ao final da vida. Podem ser reinseridos em um ciclo”, aponta. 

André conta que algumas empresas já tem enfrentado o desafio com eficácia ao padronizar formatos, tipos de materiais, reduzindo a quantidade que é utilizada. 

A professora do curso de design da Unijorge, Carine Silveira, explica que o pensamento sustentável nos projetos está sendo cada vez mais enfatizado. “Hoje o pensamento sobre sustentabilidade é mais enfático, então cabe sim ao design pensar em qual destinação a embalagem vai ter pós-uso”. Para isso, explica, o profissional precisa percorrer todo o ciclo de vida do produto, passando pela sua fabricação, uso e o pós-uso. “Ainda na concepção é importante pensar no destino daquele material, se será reciclado ou reutilizado”, diz, ressaltando que essa preocupação sempre existiu no meio e agora se tornou mais forte.  

O processo de integração da embalagem à economia circular por garantir a manutenção do material no ciclo de produção em que ele foi concebido, ou ativando outras áreas, como é o caso do artesanato que, por vezes, recorre a embalagens como matérias-primas. 

Além disso, é possível pensar também em processos menos agressivos ao meio ambiente, em materiais biodecomponíveis, ou  que tenham uma maior base de produção natural, afirma. “O grande desafio é enxergar em todo processo o papel social da embalagem, não é apenas um componente de proteção e armazenamento, é um componente social. Se no final é descartada, gera um problema social. Mas se pode ser reaproveitada ou reciclada, ela é um componente de ativação social. O desafio é olhar isso ainda no início do processo”. Isso tudo, acrescenta, respeitando as características do produto que será armazenado.  

Com o uso de princípios da economia circular, as empresas reduzem perdas produtivas, custos e, em muitos casos, ainda criam uma nova fonte de receitas, recolocando no mercado aquilo que estava indo para o lixo.

Saville Alves, fundadora da startup Solos, aponta que é fundamental, ainda na indústria, quando as embalagens estão sendo projetadas, já se pense no pós-consumo.“É fundamental escolher bem o insumo que será usado para a embalagem, a composição e a quantidade que será utilizada na fabricação são questões colocadas para o design”, explica. A Solos é um negócio de impacto que desenvolve soluções para empresas que tenham desafios relacionados à economia circular. A empresa faz isso através de projetos e ações que promovam o descarte responsável das embalagens. Um dos exemplos é o Braskem Recicla, criada pela Solos com patrocínio da empresa petroquímica em Salvador e algumas outras cidades do país. “A gente promove uma série de iniciativas para despertar no cidadão a consciência em relação ao descarte responsável”, conta. Até este domingo (19) é possível conhecer o projeto, na Praça Cayru (Comércio). 

Ela lembra que antes a caixa que guarda as baterias dos veículos era muito mais densa do que é hoje. Com o desenvolvimento tecnológico e novas concepções de design conseguiram-se modelos que cumprem a mesma função com um dispêndio menor de material. “Essa peça é mais leve e tem muito menos plástico”. 

Saville diz que é preciso pensar também em como utilizar os materiais de reciclagem. O plástico muda as suas propriedades. “Quando se recicla o vidro e o alumínio, o produto sai exatamente como se fosse de material virgem. Com o plástico não, à medida em que vai introduzindo, há uma deteriorização. Isso se resolve acrescentando matéria-prima virgem ou diminuindo o ciclo de reciclagem”, explica. 

De acordo com Saville, as cooperativas são responsáveis por 90% de todos os resíduos que entram na cadeia da reciclagem. “Por meio de qualificação, melhoria dos fluxos e contatos com alguns setores da cadeia conseguimos melhorar as condições de renda da atividade”, conta. Ela cita como exemplo a comercialização de vidro, que antes não acontecia em Salvador.  Os grandes desafios para a produção de embalagens cada vez mais aderentes à agenda da economia circular são de natureza tecnológica, acredita Saville.“Quando você pensa em matérias-primas renováveis, existem limitadores tecnológicos, tanto em relação ao conhecimento, quanto da produção em si”, aponta. Outro ponto é que há limitação de quantidade de insumos disponíveis. Apesar do montante de resíduos produzidos no Brasil, ainda há ineficiência no processo de descarte, explica. “Sem isso a gente não consegue suprir adequadamente a demanda das recicladoras”, lamenta. Durante a pandemia, o valor da matéria-prima reciclável aumentou por conta da falta de oferta.  “É muito importante avançarmos na economia circular porque todas as vezes que precisamos utilizar matérias-primas virgens, nos colocamos diante de um desafio energético maior”, diz. 

Urgência Em 30 anos, apesar dos avanços tecnológicos e do aumento da produtividade dos processos industriais, a extração de valor econômico das matérias-primas aumentou em 40%, enquanto a demanda pelos insumos aumentou em 150%, indica a CNI. Ou seja, a capacidade dos entes econômicos de otimizar o uso de materiais é mais de três vezes menor que o aumento no consumo dos mesmos. 

Yuri Tomina, gerente de Desenvolvimento de Mercado para Embalagens e Bens de Consumo da Braskem, explica que o design influencia diretamente na escolha do tipo de material a ser aplicado, levando em consideração fatores como renovabilidade e reciclabilidade, e a sua forma de aplicação. Uma possibilidade, explica, seria a de redução da espessura das paredes da embalagem. “Na economia circular é fundamental que as empresas busquem cada vez mais utilizar quantidades reduzidas de material e aumentar o potencial de reciclagem, como a priorização de embalagens incolores, de rótulos que não utilizam cola”, destaca, acrescentando a necessidade de buscar embalagens que prolonguem o tempo de vida útil do produto e intensificação do uso de refil, entre outros.

Em relação às embalagens plásticas, ele destaca a evolução para sistemas que ofereçam proteção efetiva dos produtos e que facilitem a distribuição com um mínimo possível de matéria-prima. “Hoje, o maior desafio é o fim do ciclo ou da vida útil, o que está atrelado ao descarte de resíduos, assim como o uso de polímeros incompatíveis entre si, e, portanto, não aptos a serem reciclados”, destaca. “Outro aspecto está na baixa densidade aparente da embalagem, apresentando menor incentivo econômico”.Segundo ele, há uma busca constante por métodos de desenvolvimento de embalagens plásticas que tragam a redução do impacto ambiental, o que implica em pesquisa de matérias-primas renováveis ou recicláveis, inovação e criatividade para gerar produtos e processos mais eficientes sob o ponto de vista da sustentabilidade, “inclusive em relação ao potencial de reciclabilidade no pós-consumo”.