Novo álbum de Pitty, Matriz remete à Bahia e traz parcerias com Baiana e Lazzo

Em entrevista ao CORREIO, roqueira conta como foi a construção do álbum, relembra fatos passados e revela mais sobre a filha Madalena, 3 anos

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  • Naiana Ribeiro

Publicado em 11 de maio de 2019 às 06:02

- Atualizado há um ano

. Crédito: Otávio Sousa/Divulgação

Cinco anos após laçar Setevidas, a baiana Pitty, 41 anos, retorna às paradas com o seu quinto disco de estúdio, Matriz (Deckdisc). O álbum - talvez seu melhor trabalho até hoje - mantém o espírito roqueiro que fez a artista ser uma das mais populares do Brasil desde o início dos anos 2000. Explora ainda  de forma  potente a sua terra natal e as possibilidades que músicos contemporâneos de Salvador e região abraçaram nos últimos anos.  MatrizArtista: PittyGravadora: DeckdiscPreço: R$ 27,90 Produção: Rafael RamosDireção: Otávio Souza Matriz traz parcerias com músicos locais conhecidos: Lazzo Matumbi, Larissa Luz, BaianaSystem. Também tem uma regravação de Motor, canção da Maglore composta por Teago Oliveira, vocalista da banda. Há ainda uma canção de Peu Sousa, parceiro histórico de Pitty, morto em 2013, e um sample (trecho cortado e reutilizado) de Dorival Caymmi (1914-2008).“Não comecei esse disco pensando nisso. Quando estava no meio do caminho entendi sobre o que se tratava. E me dei conta que tinha muito de Bahia. As ideias, experimentações sonoras e participações... Tudo me puxava para esse lado”, conta Pitty, em entrevista ao CORREIO. Confira completa abaixo. (Foto: Otávio Sousa/Divulgação) Desta vez, ela inverteu o processo: a turnê veio primeiro e, há quinze dias, o álbum chegou às plataformas digitais. “Como comecei a turnê antes de saber se queria fazer um disco, isso foi se mostrando muito na estrada, no ao vivo. Quando tive a ideia de montar um show novo e nele colocar a parte do ‘quarto em Salvador’ [em referência ao início da carreira, na capital baiana], que é eu e os meninos tocando violão numa rodinha mais intimista, me veio o nome Matriz”, acrescenta Pitty. 

A volta às origens se deu de forma natural e, é claro, se reflete nas 13 faixas de Matriz. “Teve essa pesquisa das origens, de como era pegar meu violão de nylon e fazer um som, do que ser baiana e estar há um tempo fora significa”, conta. (Foto: Otávio Sousa/Divulgação) Mas a própria baiana ressalta que não é exatamente um ‘retorno’. Em Bicho Solto, que abre o álbum, por exemplo, Pitty canta: “Eu me domestiquei para fazer parte do jogo/Mas não se engane, maluco, continuo bicho solto”.  “Foi uma viagem ao centro para olhar pra fora. Voltar pro meu quartinho de Salvador me mostrou o poder que um violão, três acordes e muita vontade de se expressar podem ter. Trouxe a consciência de que a necessidade de falar e criar é maior do que qualquer coisa. Mas que também é necessário oportunidade para isso. Muita gente talentosa morre na praia”, pontua.

Processo A construção de Matriz começou com Pitty escutando uma demo (gravação amadora) que mandou em 2002 para o parceiro de longa data e produtor deste álbum, Rafael Ramos. “Tinha um reggae, eu cantando voz e violão (Sol Quadrado, que está em Matriz); tinha uma música com um samble de Pink Floyd, que até hoje não tenho ideia como sampleei; tinha uma track só beat e voz... Se tem hoje sample de Caymmi, vinhetas faladas, texto declamado e isso continua fazendo sentido que nome posso chamar senão Matriz? Essa demo fez tudo fazer sentido”, lembra.

No disco, ela também traz referências que sempre estiveram na sua vida. É o caso do samba do Recôncavo, candomblé, capoeira e o próprio Caymmi - que afloraram na sua obra, através do rock. 

Foi o caso também de Lazzo. “Estava gravando Noite Inteira e senti que o verso do final precisava ser dito por uma voz que carregasse todo aquele significado. Ele aceitar o convite me deixou muito honrada”, orgulha-se.  "Lazzo é parte fundamental dessa Bahia, da matriz. Além do vozeirão, a persona dele permeou meu inconsciente desde pequena; nos encontramos muito no campo das ideias", diz Pitty sobre cantor baiano Lazzo Matumbi. Ele finaliza a música Noite Inteira (Foto: Djalma Santos/Divulgação) Mais à frente, Te Conecta traz a levada do rocksteady, ritmo jamaicano precursor do reggae. Outra homenagem deu-se através do cover da música Motor, de Maglore. “Tinha que ser agora, porque Maglore também faz parte dessa Matriz. Desse outro lado, do compositor baiano que não é o do estereótipo, e mostra uma diversidade real que existe na criação artística da nossa terra. Motor me emociona”, revela. Para a baiana, Teago Oliveira é um escritor ‘de mão cheia’.  As parceiras com a banda BaianaSystem (Roda) e com a cantora Larissa Luz (Sol Quadrado) representam a parte do álbum que reverencia a ‘Bahia contemporânea’ com a qual Pitty se identifica hoje. “Artistas que existem e resistem com sua linguagem própria, lírica, contundente, agregando à nossa cultura popular de um jeito muito orgânico. E pesado! Eu já queria fazer som com Baiana e Larissa há um tempão, já havíamos nos encontrado, já cantamos juntos em outras ocasiões. Senti que era a hora de mostrar esse outro lado, antigo e novo, que se mistura”, explica a cantora, que também apresenta o programa Saia Justa, no GNT, há três temporadas. (Foto: Reprodução/ Instagram) Além da diversidade, a maturidade somou reflexões ainda mais contemporâneas, com temas como feminismo e a maternidade real. “Surpresa com a repercussão do disco, acho que nunca chegou em tanta gente diferente e de um jeito tão massa. Fico feliz com isso, porque foi um trabalho construído com muita pesquisa sonora, coragem de experimentar e principalmente coração. Intuição, vontade de rever essa relação e de me reencontrar no meu lugar. É meu disco mais diferente e o mais livre. E também o mais pesado e profundo no sentido pessoal”, acredita.

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Você já tinha dito ano passado, quando estava em turnê, que o álbum Matriz tem muito das suas raízes.  Como foi o processo de construção desse projeto? Ele foi se dando naturalmente. Eu não comecei esse disco pensando nisso, quando estava no meio do caminho é que entendi sobre o que se tratava. Teve um momento ali, no meio do processo de produção que simplesmente me dei conta que esse disco tinha muito de Bahia, que as ideias, experimentações sonoras e participações, tudo me puxava para esse lado. Como comecei a turne antes de até saber se queria fazer um disco, isso também foi se mostrando muito na estrada, no ao vivo. Quando eu tive a ideia de montar um show novo e nele colocar a parte do “quarto em Salvador”, que é eu e os meninos tocando violão numa rodinha mais intimista, me veio o nome “Matriz”. E as outras coisas foram se desenrolando em cima disso, desenvolvendo cada vez mais essa pesquisa das origens, de como era pegar meu violão de nylon e fazer um som, do que ser baiana e estar há um tempo fora significa e como isso se reflete nas minhas composições hoje.

“Eu me domestiquei / Pra fazer parte do jogo / Mas não se engane, maluco / Continuo bicho solto”. Essa frase, da música Bicho Solto, é muito marcante. O que você quer passar com ela? É bem direta essa poesia. E pode também ser aplicada, cada um e cada uma, à sua vivência. Em relação ao trabalho, à vida em sociedade, as concessões que temos de fazer para chegar onde queremos, os ônus e bônus do que escolhemos. E a atenção constante de não se perder da própria essência, de quem a gente é no nosso âmago.

Minha vida artística inteira foi marcada por esse dilema: pertencer sem ser pertencida.

Como pensou nas participações de BaianaSystem, Larissa Luz e Lazzo? As participações foram pintando à medida em que a música pedia. Lazzo veio na minha cabeça imediatamente quando estava gravando uma voz guia de Noite Inteira, e senti que aquele verso do final precisava ser dito por uma voz que carregasse todo aquele significado. Falei dele no estúdio e fizemos o convite, ele aceitar me deixou muito honrada. Lazzo é parte dessa Bahia fundamental, dessa matriz, além do vozeirão e persona dele permearem meu inconsciente desde pequena; nos encontramos muito no campo das ideias. Quando gravamos, em Salvador, conversamos muito, e a identificação se mostrou verdadeira e pura. Larissa e Baiana são parte dessa Bahia contemporânea com a qual me identifico hoje, artistas que existem e resistem com sua linguagem própria, lírica contundente, agregando nossa cultura popular de um jeito muito orgânico. E pesado! Eu já queria fazer som com Baiana e Larissa há um tempão, já havíamos nos encontrado, já cantamos juntos em outras ocasiões… e quando eu vi que Matriz convergia para essa conversa com minha bahia pessoal, senti que era a hora. De mostrar esse outro lado, antigo e novo, que se mistura. Baiana System é genial, inovador, hardcore, carnaval, rua. Larissa também. É uma potência gigantesca, a voz, a cara e a presença da cantora baiana contemporânea, que se posiciona artisticamente e socialmente, e conquista seu lugar no mundo. Nos identificamos muito nesse aspecto do feminino, do grito, da lista, da graça e da beleza forte. Amiga de Pitty, Larissa Luz canta na faixa Sol Quadrado, que encerra o disco Matriz (Foto: Divulgação) E a regravação de Maglore... É uma homenagem? É mais uma coisa que mostrou que esse álbum tinha a ver com Bahia mesmo. Porque faz um tempão que a gente fala dessa música, eu sempre achei ela lindíssima. E Rafa Ramos, produtor do disco, sempre falava “essa música ia fica foda na sua voz”, e tal. E eu fiquei com isso na cabeça há anos, pensando que uma hora gravaria. E foi agora, tinha que ser agora, porque Maglore também faz parte dessa Matriz. Desse outro lado, do compositor baiano que não é o do estereótipo, e mostra uma diversidade real que existe na criação artística da nossa terra. Tem tantos compositores e compositoras incríveis, de tantos estilos. Tiago é um deles, escritor de mão cheia. Motor é uma música que me emociona toda vez que escuto.

Por falar em homenagem... Para O Grande Amor é um tributo a Peu Sousa. Em que momento resolveu incluir essa música dele nesse trabalho? Também já faz um tempo que venho pensando nisso. Desde que ele se foi venho me comunicando com Monique, companheira dele, e ela ia me mandando arquivos e músicas que ele deixou prontas. Uma obra tão extensa, tanta coisa boa! Composições lindas. O momento não calhava porque eu estava me dedicando a outros projetos, e não queria fazer nada por fazer. Queria que quando rolasse, fosse especial. E, de novo, quando Matriz se revelou pra mim como essa obra que mistura meus tempos e traz coisas da origem e do futuro, senti: é agora. Peu tem que estar nesse disco. Falei com Monique e Ananda, filha dele, que estava querendo regravar essa música e as duas curtiram a ideia. Procurei, na gravação, deixar a composição purinha, do jeito que ela foi feita. Não tentei fazer versão nem mudar nada. Pra ficar o máximo possível do jeito dele, mesmo.

Matriz traz muito desses ‘novos movimentos’ da música da Bahia. Como você enxerga isso tudo? A cena musical local mudou tanto desde quando você começou, lá no início dos anos 2000… Mudou muito mesmo. E acho massa, vejo como uma coisa muito boa. Eu tava falando com Russo outro dia, que hoje talvez seja possível “voltar” de alguma forma porque essa nova cena existe e se impõe como uma alternativa cultural e abre portas. Incorporando os signos e elementos locais, mas de um jeito muito original, artístico, pesado.

Quando eu comecei a ter banda no fim dos anos 90 era o auge do axé, toda a indústria e todos os olhos estavam voltados para isso. Nós que éramos parte da cena alternativa abríamos nossa trilha a facão, era tudo mato rs. Nós tínhamos que inventar os nossos espaços, festivais, locais para tocar, etc. E o ‘do it yourself’ ensina muito, foi uma bela escola. Agora é interessante observar que as coisas podem e devem ser mais democráticas, com todos os ritmos e estilos tendo seu lugar. Não acho que isto esteja sanado, mas a nova safra, que inclui aí também a galera do rap como Vandal e Baco, têm mostrado que a diversidade da cultura baiana não é só falácia e merece ser vista.

Além de percorrer seu próprio trabalho, Matriz também traz novas referências. A roqueira, claro, segue firme, mas se aproxima de outros ritmos. Como você fez para trazer ‘o seu quartinho de Salvador’ e ao mesmo tempo ser contemporânea e trazer essa diversidade de gêneros? Foi uma viagem ao centro para olhar pra fora. Voltar pro meu quartinho de Salvador me mostrou o poder que um violão, três acordes e muita vontade de se expressar podem ter. Trouxe a consciência de que a necessidade de falar e criar é maior do que qualquer coisa. Mas que também é necessário oportunidade para isso, porque muita gente talentosa morre na praia.

No processo do disco, eu escutei a demo que mandei pra Rafa em 2002. Isso foi um lance que me despertou muito pra onda de Matriz também. Porque naquela demo tinha um reggae, eu cantando voz e violão (Sol Quadrado); tinha uma música com um samble de Pink Floyd, que até hoje não tenho ideia como sampleei; tinha uma track só beat e voz. Ou seja, se tem no disco hoje sample de Caymmi, spoken word e vinhetas faladas, texto declamado, a própria Sol Quadrado e isso continua fazendo sentido e sendo verdadeiro pra mim, que nome posso chamar senão Matriz? Ouvir essa demo fez tudo fazer sentido. É antes, mas é agora, e na verdade é no futuro. 

E as referências ao samba de recôncavo, candomblé, capoeira, o próprio Dorival, sempre estiveram presentes na minha vida. Agora, afloraram também na minha obra, através da minha linguagem que é o rock. 

Muita coisa também mudou desde Setevidas, seu último disco de estúdio, até hoje. Uma das principais mudanças foi a chegada de Madalena. Como é a sua relação com ela? Nos conta um pouco mais sobre ela? Ela é maravilhosa. Alegre, forte, brincalhona. Questionadora! Me faz pensar e repensar conceitos e jeitos. E ama música. Não pode ver um ritmo que já sai dançando. E ela tem uma coisa engraçada que tudo dela é na Bahia, hahahaha. Não sei de onde tirou, mas ela fica contando pra todo mundo que tem um cavalo na Bahia (não tem, rs) Filha de Pitty, Madalena, 3 anos, participou de um show da turnê Matriz (Foto: Reprodução/Facebook) Na música Submersa você aborda isso mais de perto. Como a maternidade te transformou? De forma muito profunda e subjetiva, difícil de colocar em palavras. Me sinto mais forte, melhor. E mais sem tempo e com mais sono também hahaha.

Ninguém É De Ninguém curiosamente é uma parceria com seu marido, Dani Weksler. Como é a relação de vocês? E como foi o processo de construção dela? Eu tava passando pelo estúdio e escutei ele fazendo um beat. Falei “opa, quero isso aí”. Depois mostrei pra Martin e ele achou que eu tinha ficado doida. Porque ele ouvia o que a gente apelidou carinhosamente de “fuleiragem”, mas eu já tava escutando o rock que iria ser construído ali em cima. Aquele ritmo pode ser chamado de muitas coisas, tem a ver com arrocha, com tecnobrega. Larissa chamou de “ragga”, rs. E é tudo isso junto mesmo. E se mistura com uma base de rock que no final tem tudo a ver. 

Você está no Saia Justa, lançando um álbum que está bem avaliado pela crítica e bem recebido pelos fãs... Como você define essa fase da sua carreira? Se sente feliz, orgulhosa? Muito feliz, muito animada. Surpresa com a repercussão do disco, acho que nunca chegou em tanta gente diferente e de um jeito tão massa. Fico muito feliz com isso, porque foi um trabalho construído com muita pesquisa sonora, coragem de experimentar e principalmente coração. Intuição, vontade de rever essa relação e de me reencontrar no meu lugar. É meu disco mais diferente e o mais livre. E acho que também o mais pesado e profundo no sentido pessoal. Muito grata pelas parcerias e pela soma de energias que culminam nesse álbum. 

É tipo a história de uma blueswoman que saiu da sua terra com a viola no saco pra ganhar a vida na cidade grande, e muitos anos depois olha por cima do ombro, sem saudosismo; mas com vontade de entender essa relação e suas consequências.