Novo disco de Lenine reflete os tempos nublados em que vivemos

Cantor diz que este é o seu trabalho mais rock and roll

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  • Da Redação

Publicado em 11 de maio de 2018 às 14:55

- Atualizado há um ano

. Crédito: Flora Pimentel/Divulgação

O filósofo grego Heráclito (535 a.C.-475 a.C) teve a ideia, o gaúcho Mário Quintana (1906-1994) reaproveitou, e o cantor e compositor pernambucano Lenine a usou com uma das fontes de inspiração de Em Trânsito, álbum que lança hoje nas plataformas digitais: “A ideia de que enquanto você olha para o rio, ele já passou, quando você mergulha já é outro rio, corrobora toda esta sensação do Em Trânsito. De estar sempre no momento transitório, e não saber aonde vai chegar neste movimento”, comenta Lenine, por telefone, ao Jornal do Commercio, do Rio, onde mora desde os anos 80. 

Depois de duas trilogias, ele e a banda conceberam um álbum que engloba da filosofia pré-socrática à distopia de um mundo que parece estar rodando ao contrário: “Este livro-disco levou 20 dias para ser feito. Compus as canções novas pensando justamente neste tema do Em Trânsito, desta urgência do transitório. De estar vivendo nesta distopia atual, nesta desesperança que o Brasil está vivendo. Sou um cidadão como outro qualquer. Isso afetou muito a minha vida, eu estava sem tesão de fazer qualquer coisa. Em torno de mim só vejo uma perspectiva muito sombria. Imagina a cada dia que eu saio, pra ir pra fazer qualquer coisa, se deparar com a rua sendo tomada por uma sensação belicosa. Mas isto não é somente no Rio não”.

Em Trânsito chega ao público três anos depois de Carbono, que fechou a segunda trilogia de Lenine, com Chão (2008) e Labiata. A primeiro foi formada por O Dia em que Faremos Contato (1997), Na Pressão (1999), e Falange Canibal (2002): “Na primeira segui uma forma que foi o seguinte: descobrir o título, uma ambiência para um ajuntamento de canções já compostas. A segunda, primeiro escolhi os títulos, depois as canções. Com Carbono pronto, estava livre para fazer o que queria, ou não queria fazer”. (Foto: Flora Pimentel/Divulgação) O que ele não queria era repetir padrões estabelecidos, ou seja, criar um corpo de canções, em seguida entrar em estúdio com a banda para gravar. Em seguida, adaptar o repertório para o palco, e pegar a estrada. Terminada a turnê, voltar ao estúdio... “Eu quis fugir desta mecânica, fazer um show novo, com dois terços de repertório que você escolhe do seu próprio repertório, e um terço de canções inéditas. A situação me levou a questionar o que faço, porque faço e como faço, que me levou a fazer outra coisa. Peguei a minha turma, músicos que estão há muitos anos comigo, Jr. Tostoi, Guila, Pantico Rocha, e agora Bruno Giorgi, que é também diretor musical. Isto reafirmou uma condição de assinatura coletiva, que eu sempre tive. Mas eu pude botar o foco nesta coleção coletiva. Antes, eu gravava nos estúdios, e os meninos me ajudavam a adaptar no palco. Agora a gente fez um show, que foi o processo de tudo. Extraindo deste show tem: digitalmente, um CD e um DVD, e fisicamente, um CD, um LP, um DVD e um DVdoc. Tivemos patrocínio da Petrobras e o auxílio luxuoso do Canal Brasil, que possibilitou a gente fazer mais do que um projeto. Fizemos um processo cuja mecânica é diferente do que fazia, até pra burlar o sentimento de repetição, uma coisa que pra quem cria é muito difícil”, detalha.

O processo a se desenvolver à medida que ele lança um CD com canções tiradas do bojo do DVD, um trecho do repertório do show: “Na hora que você extrai alguma coisa do show, você já modifica a obra. Você tem a intervenção física. O foco de tudo foi o show, que é um romance sonoro, que tem o desencadear de canções que contam uma história. O CD é outra história que estou contando. Cada um dos formatos exigiu que eu pensasse novamente a obra. Uma obra que diz ser definida na asserção, “O tom é grave o tempo é breve”: “Acho que é a síntese de todo disco. Está tudo cinza. A gente não tem a mínima noção do que virá. Existe uma dissimulação exacerbada de todos os setores da sociedade. O disco soa como este caos sonoro, porque estou totalmente imerso nesta coisa. Eu não visualizo saída, isto me deixa muito desesperançoso, eu desacredito em qualquer solução a curto prazo. Acho que todo este processo está carregado desta sensação”.

Neste processo, ele conta que, o que nunca havia feito, era apresentar as canções à banda sem se valer do violão: “Queria exorcizar um pouco o instrumento, que é quase uma extensão do meu corpo. Isto foi muito bom porque eu pude exercitar a interpretação, coisa que sempre esteve ligada ao meu instrumento”.

Parceiros O CD Em Trânsito traz apenas duas canções assinadas só por Lenine. As demais são parcerias com nomes que acompanham sua carreira desde o princípio. A parceria mais antiga do disco é Lua Candeia, com Paulo César Pinheiro, com quem escreveu o clássico Leão do Norte, no álbum Olho de Peixe, dividido com Marcos Suzano, há 25 anos: “Tem mais de 30 anos. Uma canção miltoniana, clube da esquínica. Revela muito minha paixão pela harmonia, e quem me jogou nisso foi justamente o Clube da Esquina, fui impregnado disto. A novidade nesta faixa foi chamar o Amaro Freitas, que acho uma das coisas mais interessantes que surgiu ultimamente na música brasileira”.

O pianista Amaro Freitas é um dos três músicos convidados no disco. Os outros são Carlos Malta, amigo dos tempos da Falange Canibal, turma que se reunia na Lapa, ainda não revitalizada, nos anos 80; e o outro é o guitarrista Gabriel Ventura, roadie especialista em violões de guitarras na trupe de Lenine. Lula Queiroga comparece com a inédita Ogan Erê, em que um ponto é colorido por superposições de vozes percussivas (de Lenine e de Bruno Giorgi):

“Fiz uma participação no show dele no Rio, mas Lula nem escutou ainda a música gravada. Quem também não escutou a parceria que fiz com ele foi Ivan Santos”, diz Lenine. O paraibano Ivan, que mora na Alemanha, é parceiro de longas datas. O igualmente paraibano Bráulio Tavares figura em três faixas: Virou Areia, Umbigo e Lá Vem a Cidade, as três foram regravadas: “Nas canções não inéditas, aplicamos um ineditismo nela, nos arranjos, na maneira de fazer, tem um diálogo num sentimento sonoro, soturno, cinza. Lá Vem a Cidade fizemos em Labiata, mas parece que foi ontem, Umbigo é do Na Pressão, porque a gente nunca viveu tanto este umbigo exposto, todo mundo com o ego para o lado de fora”, explica Lenine, que enxertou na canção a voz do doutor Rinaldo Delamare, pediatra que foi uma celebridade nos anos 60, autor da “bíblia” das mães, A Vida do Bebê. Lenine revela que se valeu do livro, também sua bíblia para cuidar dos seus filhos.

O parceiro mais recente no disco é João Cavalcanti, seu primogênito, com quem Lenine confessa que é muito mais fácil compor: “Compor com intimidade é fácil. Compor é uma coisa de você se expor, tem muito a ver com você não querer se mostrar frágil, tem a ver com a relação humana, não é só no compor. Toda relação é assim. Trabalhar com filho é uma glória. No palco, a cada momento tenho que me concentrar pra não olhar pra trás, e ver o Bruno, meu filho. Fiz a melodia, João a letra. Posso falar pra você, João é muito capaz, é muito capaz. É escritor, cronista, roteirista, músico, cantor. Na verdade botei a família toda na história, nepotismo da melhor qualidade”.