O amor tem quatro patas

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  • Kátia Borges

Publicado em 3 de novembro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Quando eles se conheceram, ela duvidou da sanidade dele, sempre com aquele cachorro para cima e para baixo. Mas era Verão e estavam de férias em um balneário. Outros animais de estimação se esticavam ao sol nas varandas do condomínio, imitando o espreguiçar dos donos. Nada mais saudável. Toda manhã, caminhavam com o cão à beira-mar. 

Solto da coleira, o animal simulava uma fuga curta, só para voltar correndo e, novamente, disparar, quase sem fôlego, em direção ao dono. Após infinitas idas e vindas, exaustos da brincadeira, jogavam-se de qualquer jeito na toalha que ela estendia na areia. Também circulavam juntos na pequena praça do vilarejo, tardezinha, banho tomado, e seguiam, lado a lado, quando a noite caía, ocupando alguma mesa ao ar livre, o cachorro deitado no passeio.

É inegável que aquilo começara como um triângulo amoroso. Aos poucos, visto como um espião indesejável, o cachorro parecia pressentir que alguém ali estava sobrando. Não era ele, por certo. Seu olhar triste de tédio – a cabeça apoiada sobre as patas – parecia insinuar que outras já haviam tentado, sem sucesso, roubar-lhe a devoção do dono.

Agora, um ano após a separação, ela confirmava no calendário que poucos foram os encontros em que o sarnento não estivera entre eles, basicamente quando iam a lugares fechados, restaurantes, teatros, cinemas. Invariavelmente, apresentava algum problema quando voltavam. Certa vez, encontraram-no quase morto, o corpo teso, estendido no corredor do apartamento.

Antes que pudesse festejar secretamente, o cão latiu, abriu os olhos. Mas, as idas ao veterinário foram se tornando frequentes. Detectaram um sopro no coração. Desesperado, ele decidiu que todos os finais de semana seriam dedicados ao cachorro. “Nada de deixar sozinho em casa, nunca se sabe, impossível confiar que alguém cuide”. E ela nem odiava cães até aquele momento.

Sempre que lembrava o tempo perdido com os dois, sofria mentalmente. As madrugadas em clínicas veterinárias, as viagens canceladas no último segundo, os pelos voando no almoço, o som pesado da respiração do animal no banco de trás do automóvel. E o modo como seu cotidiano passara a ser regido pelo zelo extremo dedicado a um Labrador dourado.

Já não fazia sentido questionar aquele apego. Afinal, estavam distantes, retomando a cada mês o status de desconhecidos. Não entendia, então, o que a deixara tão imensamente triste ao saber da morte do cachorro. Talvez o fato de que ele estivesse, finalmente, tão sozinho quanto ela. Não era como se tivesse vencido, de algum modo, aquele abismo de afeto entre eles.