O barraco de hoje na Castro Neves

Senta que lá vem...

Publicado em 24 de junho de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Estava passando as compras no caixa, no mercadinho da Castro Neves, quando ouviu em alto e bom som: “tá repreendido em nome de Jesus!” Dedé segurava um pacote de macarrão, quando percebeu que a sugesta era para ela. Ela sabia muito bem, era por causa das suas guias de orixás no pescoço. Ultimamente, o que ela ouve de dichote e vê gente de cara feia pra ela por causa das suas guias de santo não é brincadeira. Mas naquele instante, com o pacote de macarrão suspenso no ar, o sangue subiu à cabeça e ela não conseguiu segurar. Virou-se e viu uma mulher com um indefectível vestido cinza, batendo no meio das pernas e afogado no pescoço, mexendo numa prateleira próxima ao caixa. A mulher, com expressão de falso moralismo, desviou o olhar, assim que Dedé a encarou. “Ô minha senhora, esse tá repreendido é pra mim, não é? Ou falando um português claro, esse tá repreendido é para as contas dos meus orixás!” E segurou com força as grossas miçangas que trazia em volta do pescoço e que desciam escondidas pela blusa. A mulher ficou desconcertada. Dedé tomou ar. “A senhora devia aprender a respeitar a religião dos outros. Eu nunca vi gente do axé pagando sugesta pra crente na rua. A minha religião não tem esse péssimo costume de se achar melhor do que a religião dos outros. Tanto é que você pode ser de candomblé e frequentar outra religião. O candomblé não obriga ninguém a nada, cada um é que sabe de si. Agora o que é feio é uma mulher da sua cor não respeitar a religião dos nossos antepassados. Porque, se a senhora não sabe, a senhora é negra como eu”. E esfregando o dedo com força no próprio braço gritou: “Nós somos negras!” Fez-se um silêncio constrangedor no mercadinho, com todos os fregueses e funcionários com os olhos vidrados na cena. “Porque se a senhora não sabe, nós somos negras porque os nossos antepassados, nossos parentes antigos, vieram da África, o mesmo lugar de onde veio a religião dos orixás. Essa que a senhora está repreendendo em nome de um Jesus que gosta muito de dinheiro.” Aumentou o tom puxando bruscamente as guias de orixás para fora. O colorido das contas ficou saliente na sua blusa branca. Dedé falou mais algumas coisas que – merda! - eu não ouvi direito. E continuou: “eu acho feio preto que não respeita o seu passado, seus ancestrais, o lugar de onde veio, sabia? E são tão enganados e ludibriados pelos pastores da igreja que chegam a achar que a religião dos negros é coisa do demônio”. Clima de profundo constrangimento no recinto. Todos pareciam envergonhados. Só eu balançava a cabeça em apoio. “Quando essa sua igrejazinha chegou aqui, o candomblé já existia de há muito tempo. Porque, se a senhora não sabe, nós fomos trazidos pra cá como escravos. Construímos a riqueza toda desse país. E a religião dos orixás foi a forma que tivemos de suportar tudo o que passamos.” O clima no ambiente ficou insuportável. A voz de Dedé ecoava. Eu não aguentei e intervi: “é isso mesmo!” Um funcionário me cochichou que Dedé era professora. “Porque, minha senhora, onde há negro que se respeita há de existir candomblé. O que está repreendido aqui é a sua intolerância e a sua falta de respeito com a sua própria raça. É isso que está repreendido!” Fez-se um silêncio sepulcral no mercadinho (Eu revoltado porque sai sem as minhas guias no pescoço). A mulher escorregou para os fundos do estabelecimento, sem saber onde enfiar a cara. “A senhora tá nervosa, quer um copo d’água, professora?” Perguntou o rapaz do caixa. “Não, não precisa não”, respondeu Dedé, buscando se acalmar. Virou-se para todos: “Desculpa qualquer coisa aí, gente.” A professora Dedé passou o resto das compras e saiu de cabeça erguida e alma lavada, cantarolando um ponto de Oxóssi. Esse barraco aconteceu há poucos instantes, quando eu fui ao mercadinho da Castro Neves comprar pão. Oxóssi que proteja os caminhos da professora Dedé.

Texto originalmente publicado no Facebook