O Carnaval é do folião: blocos e festas resgatam tradição dos antigos carnavais

Surgidos a partir de pequenos grupos de amigos, movimentos aliam diversão a crítica social

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  • Da Redação

Publicado em 23 de fevereiro de 2019 às 08:43

- Atualizado há um ano

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Quem está ligado no Carnaval de Salvador sabe: as cordas têm caído e  blocos com novas configurações  têm surgido dentro e fora dos circuitos tradicionais. Diferente do esquema  abadá, trio elétrico e som potente, os novos blocos têm atraído multidões não menos animadas, dispostas a caprichar na fantasia e se divertir ao som de fanfarras ou grupos percussivos. Além disso, a movimentação dos chamados “bloquinhos”, como são carinhosamente apelidados, também não está restrita aos dias oficiais da folia.

Caso dos bloquinhos Moraes e Moreira, organizado pelo Movimento Etílico dos Barris (MEB), e que desde 2014 tomam conta do bairro na quarta-feira que antecede a folia. A iniciativa, que não tem fins lucrativos e desfila também na  Mudança do Garcia, surgiu da vontade de um grupo de amigos moradores dos Barris, apaixonados por Carnaval e fãs de Moraes Moreira. Com estandartes, bloquinhos dão o tom dos eventos pré-Carnavalescos (Foto: Gil Santos/ CORREIO) “São dois blocos porque é uma brincadeira que a gente faz com uma tentativa de uma rivalização saudável: uma parte é Moraes, outra é Moreira. Só que todo mundo sai junto”, explica Maria Manuela, 30, uma das quinze pessoas envolvidas na organização. 

Surgido nos Barris, o MEB sempre prezou por fazer o desfile dos bloquinhos no bairro. Por isso, desde o início há uma interlocução com os demais moradores e comerciantes da região. “Todo ano fazemos reuniões, calculamos o impacto disso no bairro e organizamos a infraestrutura para receber o público, que tem crescido a cada ano”, conta. A gente quer ver o nosso sonho ganhar corpo, mas com prudência, com responsabilidade. Carnaval não é tempo de esquentar tanto a cabeça, é tempo de ser feliz - Maria Manuela, organizadora dos bloquinhos Moraes e Moreira

Sustentabilidade A preocupação de fazer uma festa sustentável e segura é unânime entre todos aqueles que organizam movimentos dessa natureza. O Bloco de Hoje a 8, que costumava sair uma semana antes do início do Carnaval  pelas ruas do Santo Antônio Além do Carmo, suspendeu o desfile em sua já tradicional data e anunciou uma saída-relâmpago este ano, a fim de minimizar os danos ao histórico bairro e manter a segurança dos brincantes.

 “Estamos levando em conta, principalmente, o nosso próprio tamanho e a gigantesca festa que se tornou o sábado antes do Carnaval, com um aglomerado de blocos que buscam esse mesmo dia e horário para ir à rua no Santo Antônio”, explicaram, em nota,  reiterando a preocupação com “blocos comercias ou ligados a indústria do Carnaval em utilizar esse espaço para fins lucrativos”. Bloco De Hoje a 8, do Santo Antônio Além do Carmo, não sairá na tradicional data e fará saída-relâmpago (Foto: Israel Lima/Divulgação) Quem tem lidado de forma mais tranquila com esse crescimento é o movimento cultural Palhaços do Rio Vermelho, que há nove anos tem feito seu desfile no próprio bairro semanas antes do início oficial da festa. Em 2020, eles completam uma década querendo manter a mesma missão: um espaço seguro para toda a famíla se divertir com fantasias, ao som de fanfarras e grupos culturais do interior da Bahia.

O movimento surgiu na década de 80, quando um grupo de amigos decidiu sair fantasiado  pela Avenida. Com a chegada dos grandes trios e blocos com cordas, eles trocaram o Circuito Osmar pelo Dodô, onde saíam formando uma espécie de ala, no bloco Os Mascarados. Com o crescimento do bloco, decidiram criar um desfile pré-carnavalesco no bairro que nominava o grupo. 

No primeiro ano, reuniram 400 pessoas. Hoje, chega a milhares. “Não imaginávamos que iríamos atrair tanta gente ao longo dos anos. Sentimos que já abarca a cidade inteira e é uma coisa feita do povo para o povo”, comenta Rui Santana, um dos fundadores. Palhaços do Rio Vermelho levam milhares de pessoas às ruas do bairro nas semanas que antecedem o Carnaval (Foto: Divulgação) Mais que diversão Apesar de não ser um bloquinho, o Banho de Mar à Fantasia, que acontece há sete anos na Ladeira da Preguiça, tem a mesma preocupação e também resgata uma antiga tradição pré-folia  da cidade, surgida na década de 30 e interrompida por 20 anos.

“Durante um bom tempo, esta foi uma referência de manifestação popular pré-carnavalesca. De lá surgiram alguns blocos, principalmente de travestidos, como As Kuviteiras e As Muquiranas, e também de samba”, conta  Maurício Galvão, criador do projeto Salvador Meu Amor, que retomou a festa em 2013 junto com a equipe do Centro Cultural Que Ladeira É Essa?.  

A edição desse domingo promete ser a maior desde então e, por conta disso, também preocupa os realizadores, que  contam com patrocínio de uma grande cervejaria e com apoios da prefeitura e do governo.

O evento começa com uma concentração na própria ladeira, a partir das 9h, com shows de Ministereo Público, Samba 2 de  Julho e Guiga de Ogum. O cortejo com  fanfanfarras e grupos culturais do Recôncavo acontece às 12h. Às 14h, o DJ Roger’n Roll assume o comando da festa, que depois terá shows de Xarope MC e da banda Afrocidade, com participações de Xênia França e Luedji Luna . Banho de Mar à Fantasia resgata tradição iniciada na década de 30, na Ladeira da Preguiça (Foto: Antonello Veneri/ Divulgação)

Como o nome já diz, a ideia é que todo mundo vá fantasiado e aproveite a proximidade com o mar  para dar um mergulho. “A gente tem uma preocupação com a sustentabilidade do evento, mas também acreditamos que ele ainda tem muito a crescer, dando esse retorno à comunidade durante todo o ano”, comenta Maurício. 

A maior parte dos bloquinhos e eventos que nutrem uma relação íntima com os locais onde surgem tem um forte caráter político. Valorização do bairro, grito contra a violência, críticas à especulação imobiliária e à apropriação  cultural por grandes empresas, tudo é pauta durante a diversão. “É uma dupla jogada: se divertir marcando essa resistência, que é uma característica do Carnaval, com bloco na rua, gente ocupando cidade”, resume Maria Manuela, que descarta a ideia de que seja um fenômeno passageiro.

“A história do Carnaval é essa. Eu vejo com muito gosto e naturalidade a gente voltar a fomentar e acreditar que o cidadão é quem faz a festa, não necessariamente grandes articulações. Claro que a gente precisa da estrutura, que o estado auxilie nisso, mas não precisa de uma estrutura muito grandiosa em termos de instituição para poder botar o bloco na rua. Acho muito bonito de ver e é um reencontro de Salvador com sua história”, comenta, ao sugerir que os blocos troquem experiências e pensem alternativas juntos.

Para Maurício, o sucesso de eventos desse tipo tem a ver com o desgaste do formato de corda e camarote. “As pessoas cansaram disso e Salvador está começando a se movimentar num sentido próximo ao que já acontece no Rio de Janeiro, quando blocos tomam conta do centro da cidade, de forma autônoma e espontânea. Essa é a nova leva, que na verdade é a de um Carnaval antigo, mais próximo, mais junto, mais autêntico”. Bloco de Hoje a Oito repensa maneiras sustentáveis de continuar a fazer o Carnaval no Centro Antigo de Salvador (Foto: Israel Lima/ Divulgação) Bloco na rua  Para bancar os custos com a saída na quarta-feira, os bloquinhos costumam vender camisas personalizadas, que não são uma condicionante para participar da festa, e também promover festas pagas. O Movimento Etílico dos Barris realiza neste sábado (23), uma festa no Clube do Samba, no Pelourinho, onde a entrada só é permitida para aqueles pagantes que estiverem fantasiados - eles realizam ainda um concurso que elege a melhor fantasia, com direito a edital e tudo.

O Palhaços do Rio Vermelho também faz uma festa fechada semanas antes do desfile pelas ruas do bairro, para coroar o rei e a rainha da edição e também angariar fundos que serão revertidos na saída pré-Carnavalesca. "Nenhum de nós somos profissionais de Carnaval e nos reunimos para fazer isso, entre amigos, para curtir o Carnaval como a gente gosta. Não há fins lucrativos. Hoje já uma ajuda de empresas, da prefeitura para que a gente custeie a vinda dos grupos do interior, pague os músicos. Tem a festada coroação do rei e da rainha, uma festa paga. Também pomos à venda camisas exclusivas, feitas por artistas parceiros. A gente vê esse crescimento de uma forma sadia. Cada vez a gente se organiza mais, busca informações sobre outros grupos, sobre produção de movimentos dese tipo, para fazer o melhor possível", diz Rui Santana.

O que parece uma contradição, na verdade, revela o espírito indomável do Carnaval, tradição secular que se reiventa de décadas em décadas. “O futuro do Carnaval está nas mãos do povo, como sempre esteve. Nunca existiram regras e, naturalmente, a festa foi se moldando e ganhando os contornos que tem hoje. O futuro do Carnaval não é fácil de definir, mas ele existe e sempre terá a cara que o folião quiser”, complementa.