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Paulo Sales
Publicado em 23 de dezembro de 2019 às 05:00
- Atualizado há um ano
Al Pacino e Robert De Niro em cena de O Irlandês, disponível no catálogo da Netflix (foto/divulgação) Martin Scorsese trafega pelo submundo do crime como se pertencesse a ele. É o seu habitat, onde se sente à vontade e onde o seu talento aflora como uma força da natureza. Não por acaso, duas de suas três obras-primas abordam esse universo: Os Bons Companheiros (1990) e Cassino (1995) (a outra é Touro Indomável/1980). Essa espécie de obsessão, da qual ele se vê incapaz de manter distância por muito tempo, volta a se manifestar em O Irlandês. Mas, enquanto reconstituição da máfia dos sindicatos e do crime organizado nos EUA dos anos 50 a 70, o filme fica aquém das suas possibilidades. Confuso, com ritmo claudicante e personagens difíceis de memorizar, lembra um pastiche dos antigos filmes de Scorsese, e não um filho legítimo da sua filmografia.
É só a partir da segunda metade (de um total de três horas e meia) que O Irlandês alcança enfim sua dimensão épica, trágica, dostoievskiana, tornando-se uma espécie de Crime e Castigo com assinatura de Scorsese. Um pungente tratado sobre amizade, lealdade, envelhecimento e, por outro lado, sobre traição, pusilanimidade e remorso. Nesse momento, desistimos de tentar compreender as engrenagens da alta bandidagem e nos concentramos no triângulo que une e opõe o matador de aluguel Frank Sheeran (Robert De Niro), o lendário líder sindicalista Jimmy Hoffa (Al Pacino) e o velho gângster Russ Buffalino (Joe Pesci). Frank transita permanentemente num fio da navalha, tentando se equilibrar sobre interesses muito maiores do que ele. Daí existir um limite para sua fidelidade e seus sentimentos. Ao final, é um homem devastado, corroído pela culpa.
Como atores, De Niro e Pacino envelheceram mal. Estão caricatos, histriônicos, como vem acontecendo há algum tempo. Já Pesci permanece o grande intérprete dos velhos clássicos de Scorsese. De Niro foi particularmente prejudicado pelos efeitos digitais que o rejuvenesceram na primeira parte do filme: parece um velho homem jovem. São detalhes que prejudicam a fluidez da narrativa, mas não a inviabilizam. Até porque é raro estarmos diante de dois dos maiores astros do seu tempo contracenando. Naqueles momentos em que Hoffa e Frank demonstram um afeto genuíno entre si, O Irlandês atinge o patamar da grandeza.
Então, em algum momento, nos damos conta de que as décadas que transcorrem ao longo do filme representam também a passagem do tempo na vida real. Dos atores, do diretor e de nós mesmos. Testemunhamos o envelhecimento inapelável de Pacino e De Niro, ambos próximos dos 80 anos. E lembramos que há mais de quatro décadas esses rostos vêm povoando as telas de cinema e o nosso imaginário, em filmes que guardamos com carinho na memória afetiva: Um Dia de Cão (1975), O Pagamento Final (1994), Scarface (1984), O Franco Atirador (2015), Fogo Contra Fogo (1995), O Poderoso Chefão (1972) e tantos, tantos outros. Com seu tom outonal, O Irlandês é quase uma despedida, um adeus dos mestres. E, principalmente, uma amostra do vazio enorme que eles deixarão.