O desafio de transformar a dor em arte: como o luto inspirou escritores

A vivência do luto inspirou diversas obras literárias, cuja leitura nos aproxima do sofrimento alheio e da reflexão sobre a morte; confira 

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  • Kátia Borges

Publicado em 23 de maio de 2021 às 16:00

- Atualizado há um ano

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O Ano do Pensamento mágico (Nova Fronteira | 240 pags | R$ 42)  Lançado no Brasil em 2006, este livro da romancista e ensaísta Joan Didion chegou a ser incluído pelo crítico literário Robert McCrum, do The Guardian, na lista dos cem melhores títulos de não-ficção já escritos no planeta. Aos 70 anos, Didion viveu a vertiginosa experiência da morte do marido, o também escritor John Gregory Dunne, em 2003, e da filha única do casal, Quintana, apenas três anos depois. Essas duas perdas dolorosas deram origem a O Ano do Pensamento Mágico e Noites Azuis, respectivamente. O título do primeiro livro, considerado por muitos como um divisor de águas na abordagem literária de processos de luto, descreve a impressão quase obsessiva que ela experimentou, ao longo dos primeiros doze meses após a partida de Dunne: a de que ele estaria vivo em algum lugar e voltaria a qualquer momento para casa.

O Coração Pensa Constantemente (Arribaçã | 198 pags | R$ 55)  Duas irmãs, uma relação de espelhamento. Para Luísa, Rubi é inalcançável em perfeição, somente a morte fará com que aflorem as fragilidades de sua personalidade. A história das duas, da infância à maturidade, tendo como pano de fundo ora um Brasil ainda ingênuo, promessa de futuro, ora um país em frangalhos, devastado por uma pandemia, é narrada com habilidade pela escritora Rosângela Vieira Rocha em O Coração Pensa Constantemente. Presa em seu apartamento, e na reflexão sobre a perda da irmã mais velha, a artista plástica e também escritora Edna Vieira Rocha Rezende, a autora recorre à subversão do real pela ficção e oferece ao leitor uma trama sublime, densa e sensível. O título faz referência ao Hexagrama 52 do I Ching,  que simboliza a quietude. Mas calar os sentimentos não é nada fácil , sobretudo quando eles parecem gritar.

O Pai da Menina Morta  (Todavia | 176 pags | R$ 54,90)  Em 2016, o escritor Tiago Ferro viu a sua vida virar de cabeça para baixo quando sua filha mais velha, Manu, morreu aos 8 anos por complicações da H1N1. Para a imprensa, sempre à caça de um drama para chamar de seu, ali estava “o pai da menina morta”, personagem quase desumanizado em sua dor e desamparo. Só dois anos depois, ele conseguiria finalmente abordar o processo de luto que vivenciou, ao lado da mulher e da filha caçula, em uma outra perspectiva, recorrendo à ficção, fragmentando a narrativa e lançando mão da liberdade criativa. Pensado inicialmente para ser publicado em formato de diário, o livro venceu o Jabuti de Melhor Romance Literá- rio em 2019 e oferece ao leitor muito mais que os bastidores de um drama real, como se poderia pensar. A despeito da referência inescapável, o que Tiago faz é literatura de alta qualidade. A Invenção da Solidão (Cia. Das Letras | 200 pags | R$ 57,90) Publicado originalmente em 1982, com um título ligeiramente diferente, O Inventor da Solidão, este livro de Paul Auster foi a sua primeira obra de não-ficção e escrita sob o impacto da morte do pai, com quem o escritor nunca conseguiu se conectar verdadeiramente em vida. Fechado e distante, o pai de Auster era um enigma que ele nunca havia se animado a sequer tentar decifrar. Após a perda, no entanto, torna-se uma obsessão para ele revirar o passado da família em busca de uma compreensão possível. Dividido em duas partes — Retrato de um Homem Invisível e O Livro da Memória —, A Invenção da Solidão é uma espécie de acerto de contas sem qualquer pretensão aritmética. Passa pela contemplação da casa, dos objetos, pela revelação de segredos assombrosos do passado e, sobretudo, pela percepção de sua própria força criativa.

K. Relato de uma Busca ( Cia. Das Letras | 176 pags | R$ 47,90)  Este livro de Bernardo Kucinski entrou há muito para a lista dos clássicos brasileiros contemporâneos. Aqui ele comparece por também envolver um processo de luto, talvez o mais doloroso — vivenciado por quem perde alguém, mas não pode atravessar as fases da perda que, formalmente, consolidam a ausência: o registro do óbito, os ritos do velório, o sepultamento. Para o escritor e sua família, a alternativa foi transformar luto em luta, numa busca incansável por desvendar o destino de Ana Rosa Kucinski. Militante da Aliança Nacional Libertadora (ANL), grupo que lutava contra a ditadura, e professora do Instituto de Química da USP, Ana Rosa foi presa em abril de 1974, aos 32 anos, junto com o marido, Wilson Lins, e nunca mais foi localizada. Em 2018, por este livro, seu autor recebeu o prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos.

A Ridícula Ideia de Nunca Mais Te Ver (Todavia | 208 pags | R$ 59, 90)  Neste livro, escrito pela jornalista e escritora Rosa Montero, duas tramas amorosas marcadas pela perda se entrelaçam. A da própria autora, que vivenciou o luto pela morte do marido, Pablo Lizcano, e a da lendária cientista polonesa Marie Curie, única mulher a vencer por duas vezes o Prêmio Nobel (em física e em química), que regis- trou em um diário a dor experimentada com a perda de Pierre Curie, seu companheiro e também cientista. Foi, precisamente, a leitura desses relatos que estimulou Montero a quebrar o silêncio e abordar o seu próprio processo de reconstrução pessoal. Sobre o percurso de transformação do luto em literatura, que acaba por redefinir a capacidade de seguir, ou não, adiante, a própria autora escreve: “(...) quando a dor cai sobre você sem paliativos, a primeira coisa que ela lhe arranca é a palavra”. Mil Rosas Roubadas (Cia. Das Letras | 280 pags | R$ 54,90) Transitando com talento entre teoria e prosa, Silviano Santiago venceu o Oceanos de Melhor Livro do Ano, em 2015, com esta narrativa apaixonada sobre a relação com Ezequiel Neves, produtor e letrista de bandas de rock dos anos 80, especialmente o Barão Vermelho. Unidos por infinitas afinidades aos 16 anos e separados por suas escolhas de vida, eles se reencontraram em 2010, quando o escritor visitou o jornalista no leito de um hospital, devastado por um câncer. “Perco meu biógrafo, ninguém me conheceu melhor que ele”, confessa o narrador, assumindo o papel que caberia ao amigo morto. Entre referências ao contexto cultural no qual cresceram, citações de Roland Barthes, entre outros autores, além de belas reflexões teóricas, a narrativa nos coloca em contato com a força da amizade, esse sentimento que muito se assemelha ao amor.

Fazes-me Falta  (Alfaguara | 224 pags | R$ 55)  Um homem, uma mulher e uma amizade que é o prenúncio não realizado de um grande amor. No meio do caminho, a morte dela interrompe qualquer possibilidade de final feliz. Com uma narrativa fortemente poética e dividida em breves monólogos, a escritora portuguesa Inês Pedrosa escreveu um de seus romances mais autênticos. Ao mergulhar nas páginas de Fazes-me Falta, o leitor se vê compartilhando a intimidade dos personagens e lamentando suas escolhas. Com grande engenhosidade, Inês Pedrosa nos coloca diante de uma situação inusitada: a observação do processo do luto na perspectiva de quem morre, em paralelo às expressões da dor de quem fica. Lançado em Portugal em 2002, o livro chegou ao Brasil no ano seguinte, numa edição da Planeta, e é dedicado à memória do pai da autora, que tem a perda como um de seus temas recorrentes.

Não falei  (Editora 34 | 150 pags | R$ 43) Conciso e forte, este romance de Beatriz Bracher, lançado em 2004, evoca em nós um outro tipo de perda: o apagamento de si. Processo de luto daquilo que se perde em nós, espécie de morte em vida. Morre o que fomos ou morre o mundo em que acreditávamos. Ambos, talvez. Seguimos vivos, no entanto. É assim que acontece com o protagonista de Bracher, Gustavo. Jovem professor universitário, após o Golpe de 64, ele acaba preso e torturado. Após ser libertado, e reconduzido ao cargo de diretor de uma escola, passa a conviver com a acusação velada de que foi o responsável pela delação de um de seus melhores amigos, Armando, assassinado nos porões da ditadura. Narrado em primeira pessoa, o livro mostra de forma criativa e fragmentária o desencanto de Gustavo diante das rupturas de sua história, que se confunde com a história do país.

Morreste-me  (Dublinense | 64 pags | R$ 36,90) Obra que marca a estreia literária do escritor português José Luís Peixoto, Morreste-me narra a relação do autor (ganhador do Prêmio Saramago em 2001, aos 27 anos) com seu pai, acompanhando-o no processo de despedida e atento às suas vulnerabilidades. Narrado em primeira pessoa, e em linguagem poética, o livro mostra também o depois da perda, quando o filho precisa encarar a ausência paterna, a burocracia decorrente da morte e o retorno ao cotidiano, e se vê às voltas com uma engrenagem que tenta nos arrancar da dor de forma ainda mais dolorosa, impondo a continuidade da vida, com seus compromissos sempre inadiáveis. A funcionalidade não combina com a tristeza e menos ainda com as memórias da infância que se misturam nesse processo.