'O desafio é não deprimir', diz Arnaldo Antunes

Cantor e compositor fala sobre política, morte e amor no novo disco O Real Resiste, que homenageia João Gilberto

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  • Laura Fernades

Publicado em 11 de fevereiro de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marcia Xavier/Divulgação

“Miliciano não existe/Torturador não existe/Fundamentalista não existe/(...) Homofobia não existe/ (...) É só pesadelo, depois passa”, diz o cantor Arnaldo Antunes, 59 anos, em seu 18º disco, O Real Resiste. Lançado há menos de uma semana em todas as plataformas digitais, o álbum de arranjos serenos traz letras incisivas sobre política, morte e amor, além de uma homenagem ao mestre baiano João Gilberto (1931-2019).

Com desejo de passar por Salvador na turnê que começa em abril, mas ainda não tem datas confirmadas, Arnaldo  conta ao CORREIO que o disco resulta de sua estratégia de sobrevivência ao mundo politicamente polarizado. “O primeiro desafio – não só para o artista, mas para qualquer cidadão que queira preservar o mínimo de espírito democrático – é não deprimir para ter forças de reagir”, acredita.

Por isso, o cantor se isolou em um sítio-estúdio no interior de São Paulo, em meio a árvores, lagos, cavalos, cachorros, crianças e galinhas, para gravar o álbum que foge do peso rítmico do último trabalho, RSTUVXZ (2018). “Talvez por causa da idade, do momento, ou do ritmo alucinado da metrópole: cada vez mais venho necessitando dessas fugas, para valorizar os acontecimentos”, explica. (Foto: Marcia Xavier/Divulgação) Cultura Não à toa, o cantor escolheu a música João para abrir o disco. Suave e composta com o baiano Cézar Mendes, a canção acompanhada por piano e violão faz referência ao pai da Bossa Nova,  João Gilberto, e dá o tom do discurso que costura o álbum. A letra defende que quando uma pessoa aperfeiçoa o silêncio, “toda a multidão escuta o coração e se torna civilização”.

“Tão poucos têm noção/De como se inaugura uma nação/ Não é bem com monumentos/ Ou com balas de canhão/É quando uma brisa bate na respiração/E entra no juízo de um João”, diz um trecho.“Achei bonito abrir o disco com essa homenagem a João, com esse discurso. Acho que a gente está vivendo um momento que tem de valorizar de alguma forma a cultura e a educação, e não a cultura da violência”, defende Arnaldo.Por isso, o artista reforça que foi uma “decisão importante” abrir O Real Resiste dessa forma, afinal João Gilberto trouxe “uma contribuição imensa para a cultura” e a proposta do disco segue o mesmo caminho: chamar a atenção para o valor da cultura para uma nação. Acontece que tem muita coisa sendo ameaçada e hostilizada, acrescenta Arnaldo, então aumenta a necessidade de valorizar “o que realmente importa pra gente”.

Coração Assim, o disco começa dizendo que se “escutar o coração”, “a multidão se torna civilização”, e termina perguntando “onde foi parar meu coração”. “Meu coração está nas canções”, responde Arnaldo, ao CORREIO. A metáfora que costura dez músicas inéditas está relacionada à carga emocional de coisas que o mobilizaram nos últimos tempos.

Ver os filhos crescendo, por exemplo, inspirou a delicada Na Barriga do Vento, registro afetivo com sua filha, Celeste, e composto durante a turnê dos Tribalistas com Carlinhos Brown, Pedro Baby, Pretinho da Serrinha e Marcelo Costa. Questões amorosas também estão no álbum que tem participação de sua mulher, a artista plástica Marcia Xavier.

A cultura, portanto, é apenas uma das chaves para encarar o mundo de hoje. “A chave é a cidadania, a defesa de valores importantes para a democracia, do diálogo com os diferentes, a valorização das minorias, dos direitos humanos, a preservação do meio-ambiente...”, enumera Arnaldo. “Espero que o real resista”, deseja.