'O desejo servil ainda está na casa dos patrões', diz socióloga

Nem o feminismo escapa do discurso higienista que pode mirar as empregadas na pandemia

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  • Fernanda Santana

Publicado em 1 de maio de 2021 às 11:00

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Nara Gentil/CORREIO

Em outubro do ano passado, a pesquisadora Thays Monticelli iniciou mais uma rodada de pesquisas sobre o trabalho doméstico no Brasil. Durante uma entrevista, soube da morte da empregada doméstica de uma família de classe média do Rio de Janeiro. Enquanto a filha da patroa insistia que poderiam ser responsáveis pela contaminação da funcionária, a mãe se recusava. Dizia que ninguém provou aquilo. “Foi diabetes”, repetia.“A questão do contágio sempre fez parte da narrativa do trabalho doméstico remunerado. É interessante a gente vê de que forma o discurso do contágio vai aparecer, porque talvez não seja tão claro assim”, explica Thays, doutora em Sociologia e em pós-doutoramento pela Universidade Federal do Rio de Janeiro para investigar o papel das ONGs feministas nas ações de apoio às trabalhadoras domésticas na pandemia.O trabalho doméstico surge, no Brasil pós-escravidão, sob o signo das reformas sanitárias e higienistas. A rua, símbolo de sujeira e contaminação à época, confrontava com a casa, um local de resguardo, de perfeição. E cabiam as empregadas a manutenção, ao mesmo tempo que era vistas como ameaças. Tanto que as chamadas “criadas adentro”, que viviam na casa dos patrões, eram as prediletas - apresentavam menos riscos aos patrões. Agora, a pandemia pode fazer uma atualização desse processo.“Em alguns países da América Latina, essas mulheres eram obrigadas a fazer teste antes de ir para o trabalho, confinamento na casa dos patrões, que não ocorre só no Brasil”.As complexidades envolvidas, historicamente, no trabalho doméstico remunerado no Brasil, são descritas por Thays como “cultura doméstica”, conceito que tenta englobar as relações de poder - inclusive, subjetivas - envolvidas no trabalho doméstico. Para Thays, interessa, sobretudo, pensar como elas refletem e escancaram a desigualdade entre duas mulheres - patroa e empregada. “Já escutei de mulheres feministas dizendo assim: 'Olha, para mim não faz diferença se a empregada vem de ônibus para o trabalho, qual é a diferença, ela já está acostumada, está pegando ônibus para outras coisas'”. Dentro de casa, diz Thays, “nem sempre o feminismo consegue fazer uma revolução”. As empregadas são as figuras que, ainda hoje, precisam manter a perfeição da casa e os rigorosos padrões de uma mesa bem posta, um banheiro bem limpo, uma comida bem temperada. Monticelli acredita que debates sobre trabalho doméstico amplia debates sobre feminismo (Foto: Acervo Pessoal) Nesta entrevista ao CORREIO, a socióloga explica as marcas das origens do trabalho doméstico, como “nem sempre a precarização do trabalho doméstico vem de setores conservadores e tradicionais”, porque a sociedade brasileira, mesmo tão dependente do serviço doméstico, desvaloriza o trabalho doméstico e afirma que, sem uma política efetiva, empregadas serão sempre amortecedores para o sucesso profissional de mulheres da classe média.

Confira na íntegra:

Você assume que, no Brasil, existe uma “cultura doméstica”. O que seria isso?

O que eu tento colocar para mim, como uma questão forte, no doutorado [de 2017], é entender como as empregadoras estavam percebendo, dentro dos seus lares, a ampliação legislativa para as trabalhadoras. Quando eu fiz a pesquisa de campo, eu me surpreendi, porque, nas entrevistas que eu fiz, as empregadoras sempre se colocavam muito à favor da legislação. Mas, à medida que as entrelinhas apareciam, várias facetas dessa diferenciação que aparece nas casas, nessa relação domesticas, também surgiam. As patroas me diziam que eram favoráveis [à legislação], mas que tinha que ver se elas [empregadas] estavam merecendo. Eu me perguntava e perguntava a elas o que era merecer. Elas me respondiam que abriam gavetas e tinha poeira, que as empregadas paravam no meio do serviço para tomar café... Enfim, todo um discurso que aparecia, há anos, ainda muito forte. 

Era uma compreensão muito maluca, porque num certo sentido não existe uma profissionalização do trabalho doméstico do Brasil. O padrão do que é um trabalho doméstico bom e ruim vai da subjetividade de cada casa e dos patrões.Isso marca uma relação de poder intrafamiliar que mostra a desigualdade entre duas mulheres. São mulheres que compreendem o quanto o trabalho doméstico é pesado e que dizem que o trabalho doméstico remunerado liberta, reconhecem nesse sentido a importância. Mas, na hora de delegar o serviço, usam parâmetros extremamente hierárquicos e severos. Sempre com formas de diferença para marcar qual era o local da patroa e qual era o da empregada. Os discursos de diferenciação que elas acionavam eram de classe e de raça, mesmo quando as trabalhadoras eram brancas. Aqui, em Curitiba, por exemplo, onde o trabalho doméstico é também feito por brancas, falava-se que a empregada era de tal colônia. Com essa compreensão, tentei traduzir essa complexidade com a "cultura doméstica", que englobaria justamente todas essas relações de poder simbólicas que aparecem no trabalho doméstico remunerado e que são parte essencial das empregadoras se enxergarem como donas das suas casas, mas que odeiam as tarefas domésticas e as delegam para as trabalhadoras. A cultura doméstica tenta evidenciar isso. 

A cultura doméstica fica clara nessas exigências de uma casa limpa, uma comida bem feita, uma mesa bem servida. Mas, em todas as casas essa cultura aparece da mesma forma?

Uma das questões que apareceram da minha tese é que só ouvi mulheres empregadoras da classe média curitibana. Talvez, se eu tivesse ampliado isso, eu tivesse visto a realidade de outra forma. Ao mesmo tempo, esse grupo de mulheres que eu entrevistei não eram homogêneas do ponto de vista ideológico político, e vinham de diferentes espaços. Nem sempre esses discursos [hierárquicos e severos] se correlacionam apenas a elites conservadoras. 

Os padrões de diferenciação também estão em discursos e práticas de pessoas que tem uma compreensão e olham para o trabalho doméstico com certa benevolência. Mesmo entre elas, também havia uma incompreensão em relação ao que era trabalho doméstico. Nem sempre a precarização do trabalho doméstico vem somente de setores compreendidos como conservadores e tradicionais do Brasil. A pandemia escancara tudo e, claro, ao escancarar tudo, a gente sempre vai olhar para o que mais choca, o extremo.

O caso de empregadas confinadas, por exemplo. Mas, agora que fiz as entrevistas, em outubro do ano passado, todas as mulheres de classe média que entrevistei já tinham retomado o trabalho doméstico de novo, mesmo sabendo que as trabalhadoras tinham menos acesso à saúde pública, expostas nos ônibus.   Empregadas domésticas denunciaram situação de confinamento durante pandemia (Foto: Nara Gentil/CORREIO) Nem sempre os discursos advêm do conservadorismo. Elas me falavam que preferiam comer uma fruta verde, que limpar a casa, que estavam exaustas e não conseguiam estabelecer o mínimo aceitável de divisão de tarefas. Nenhum menino Miguel morreu na casa dessas empregadoras, mas precisamos pensar que relação é essa em que não suportamos mais nossas casas, casamentos, em que não há divisão de tarefas domésticas. 

As empregadas domésticas assumem, então, esse papel de manter o padrão dentro das casas na casa dos patrões. Por que, no início do trabalho doméstico, não houve uma alternativa a ele?

Olha, não tem como falar de trabalho doméstico remunerado sem considerar que passamos por um período colonial longuíssimo. A colônia termina no Brasil, mas a escravidão não. Nos tornamos independentes, sendo escravocratas. É um regime escravocrata alongado que pode nos fazer entender um trabalho que se configura não só como muito servil, como muito afetivo. É importante compreender isso, porque sempre olhamos esse trabalho sob o viés da exploração, mas o quanto que não é pesado para muitas trabalhadoras que passam a conviver com essas famílias cotidianamente fazer imposições em termos de direito e de novos padrões de trabalho?

A escravidão é a base para que, durante muitos e muitos anos no Brasil, mulheres morassem na casa dos empregadores e doassem suas vidas para sobreviver e trabalhar. A gente não pode dizer que essa é a realidade predominante hoje. Numa consultoria que fiz para uma ONG, as próprias trabalhadoras falavam que se agarravam aos filhos dos patrões, como se fossem delas, e hoje não. Hoje, a compreensão é diferente. O advento da diarização também contribui para isso, institui uma relação menos servil, embora também com menos direitos. Se há mudanças no comportamento do trabalho doméstico, é importante colocar que essas mudanças vêm de lutas das trabalhadoras.

O desejo servil ainda está presente na casa dos patrões. Algumas vezes, na minha tese de doutorado, eu perguntava: "o que é tratar empregada como empregada?" A patroa dizia que tratar como empregada era tratar mal e quando se fala em tratar bem, não aparece relação de trabalho, e sim uma relação servil. 

E o quanto esse afeto criado nessas relações pode ser prejudicial para um trabalho digno?

Quando esse afeto impossibilita uma determinada emancipação, ele é prejudicial. Tem uma tese, de uma antropóloga chamada Luísa Dantas, que traz o caso de uma empregada que conseguiu conquistar uma casa via Minha Casa Minha Vida. Ela morava na casa dos empregadores, aí em Salvador, e conseguiu uma casa para ela, mas nunca conseguiu mudar, nunca conseguiu sair da casa dos empregadores. Ela tentava, mas não conseguia. Era essa relação afetuosa e dependente com a casa dos empregadores. E estamos falando de uma sindicalista.

O afeto prejudica quando está vinculado a uma dependência que impossibilita a emancipação, uma posição de direitos. Agora, é também ingênuo pensar que essa relação será desprovida de afeto. Isso não existe. Trabalhamos nos lugares e fazemos boas relações com nossos colegas de trabalho. Vamos estabelecendo boas relações. O problema não é esse, o problema é quando se torna um impeditivo de direitos

Você fala dessa diferença entre o ontem e o hoje. Números vinham apontando o envelhecimento do trabalho doméstico, porque as mais jovens passaram a ter mais oportunidades. Você acha que a crise abalará isso?

A gente ainda vai ver muito mais retrocesso nesse sentido. Se a gente pensar que a categoria doméstica foi a mais atingida pela pandemia... 1,5 milhão e meio de trabalhos não será recuperado rapidamente, facilmente. A gente sabe o que acontece. A estrutura do trabalho doméstico no Brasil é extremamente informal e, agora, vai surgir ainda mais espaço para uma base que contém a extrema necessidade da empregada doméstica e os desejos do empregador. A gente sabe que a economia vai mal. As empregadas vão ganhar menos, vão trabalhar mais. É uma relação extremamente complexa.

Numa relação em termo de pensar estrutura, a gente já vinha observando o envelhecimento da categoria, porque justamente houve um momento de escolaridade maior. A gente vai ver um número de mulheres mais escolarizadas voltando para esse trabalho. Existem muitas jovens que não estão conseguindo ter acesso ao ensino remoto e que verão suas famílias precisando de dinheiro e vão entrar no trabalho doméstico remunerado. Existe, também, uma relação muito grande entre o que está sendo feito, irresponsavelmente, com a educação, e o trabalho doméstico. Desempregadas, mulheres têm entrado informalmente no setor doméstico (Foto: Nara Gentil/CORREIO) O cenário não é animador em nenhum aspecto. As pessoas que estão nos extratos mais precários vão começar a receber ainda menos. Existe uma emergência de se ter uma política econômica que esteja em consonância com a política de isolamento social. É impossível pensar nisso, para os mais pobres, se não há suporte.

O trabalho doméstico nasce no país em meio a reformas sanitárias e higienistas, em que a empregada era vista como signo de contaminação. Você vê uma atualização disso agora na pandemia?

A questão do contágio sempre fez parte da narrativa do trabalho doméstico remunerado. Mas, importa pensar como isso se recoloca num momento em que o trabalho doméstico está em evidência. A sociedade brasileira olha, hoje, para o trabalho doméstico, de forma muito mais cuidadosa. Há uma emancipação discursiva do próprio setor. A gente viu, por exemplo, o marido da Ivete Sangalo falar que pegou a covid-19 da empregada. Ok, esse discurso pode não ser unânime. Mas, por exemplo, nessa pesquisa que fiz no ano passado, eu estava falando com uma empregadora e ela, em algum momento, disse para eu falar com a empregada. Aí ela levou o celular e, no que ela vê a empregada, já manda colocar a máscara, manda se afastar, já faz todo um discurso de distanciamento.

Numa outra entrevista, o caso era que a empregada doméstica faleceu de coronavírus, e a empregadora se recusava a reconhecer isso. A filha dela falava o tempo todo: “eu falava para minha mãe, a gente não precisava disso, e agora ela faleceu de covid”. A empregadora se negava, dizia que ninguém sabia do que a empregada tinha morrido de covid, que, na verdade, tinha sido de diabetes. É interessante a gente ver de que forma o discurso do contágio vai aparecer, porque talvez não seja tão claro assim. Por exemplo, outra empregadora saía de casa, ia para outro apartamento, para casa do namorado, para não ter o risco do contágio, quando a empregada ia.

E quais são os mecanismos de controle que podem surgir disso?

No Brasil, é muito difícil de perceber, porque a política de controle da pandemia é controversa. Mas, em alguns países da América Latina, essas mulheres eram obrigadas a fazer teste antes de ir para o trabalho, fazer um confinamento na casa dos patrões - que se mostrou na reportagem do CORREIO, mas não ocorre só no Brasil. Os mecanismos extremos e subjetivos aparecem. 

As chamadas “criadas adento”, empregadas que viviam na casa dos empregadores, tinham preferência nesse início, porque eram mais fácil de controlar. Você vê uma retoma disso hoje?

Nos dados da PNAD, a gente vê um desemprego em massa e pouquíssimas trabalhadoras que tiveram sua renda preservada para se manter em quarentena. Que isso não vai acontecer, o retorno da moradia da empregadora no trabalho, eu duvido muito. Ou que não vão aparecer novas formas [de trabalho], de passar 15 dias de trabalho e outros de folga. O que é extremamente preocupante porque existem mais violências simbólicas apareceram mais, como pude ver no doutorado, com mulheres que residiam na casa dos empregadores.

Não era só a falta de uma jornada de trabalho, sem cumprimento de horas extras, mas um reflexo da nossa total falta de políticas públicas em termos de cuidado e relações e intrafamiliares. A classe média sempre teve a oportunidade de fazer a diferenciação entre a casa e o trabalho com contratação - de empregadas, de creches, de escolas.

A pandemia privou tudo isso. Isso pode reverberar mais numa postura mais servil em relação ao trabalho doméstico, porque a casa esta muito exacerbada durante a pandemia. Mas, quais são os padrões para manter essa casa? 

Isso levanta a discussão sobre o privado. O quanto essa noção de privacidade da casa, como um lugar intocável, é um desafio um trabalho doméstico menos precarizado?

Essa já é uma reivindicação antiga do movimento feminista. Na década de 70, já se falava como essa dicotomia entre público e privado era apenas discursiva. Porque, quando você vai pensar as relações privadas, você olha a casa como algo de pureza, carinho e aconchego. A casa como o local onde você se livra das mazelas e instituições da rua. Mas, a casa não é um lugar de sossego. Se você contrata uma empregada, existe uma relação contratual trabalhista. Existe o contrato do casamento, existem as questões financeiras e relações burocráticas. O dinheiro tem, inclusive, um peso para as divisões domésticas. Há mulheres que relatam que não dividem tarefas domésticas, não pediam para os maridos lavarem os partos, porque eram eles os principais provedores.

Compreender o lugar privado, a casa, em todas as suas relações e dinâmicas de poder, inclui o respaldo e a valorização do trabalho doméstico, inclusive para se pensar como é difícil. Não sei como olhar para o caso do menino Henry sem pensar como era difícil para a babá ter uma decisão mais enfática em relação àquilo. Vamos olhar para a violência doméstica... É extremamente difícil. Sem dúvida alguma, a pandemia talvez escancarou que essa dicotomia entre público e privado não era tão grande como se pensava.

E por que a gente não mudou, ainda, a relação que a gente tinha com essas mulheres trabalhadoras domésticas, mesmo nesse momento?

Uma das primeiras coisas a serem compreendidas em relação ao trabalho doméstico remunerado é que as mulheres foram as que mais ficaram desempregadas durante a pandemia. O índice de participação da mulher no mercado de trabalho diminuiu e vai ter um impacto direto na casa, porque vai haver desemprego da trabalhadora doméstica. Tem uma outra coisa assim: as mulheres estão mais em casa, estão fazendo mais tarefas médicas. 30% por cento das mulheres que ficaram desempregadas, na pandemia, não voltaram a procurar emprego, porque justificaram que tinham que se dedicar às tarefas domésticas e a do cuidado integralmente. 'Confinada', de Leandro Assis e Triscila Oliveira, trouxe histórias sobre o serviço doméstico durante a pandemia (Foto: Cedido/Arquivo Leandro Assis) Por outro lado, a pandemia não trouxe uma transformação dessas relações de trabalho doméstico remunerado. A pandemia não faz com que o trabalho mude, faz com que o trabalho intensifique, né? De fato, nenhum trabalho mudou. 

As mulheres não estão conseguindo estabelecer novas dinâmicas de trabalho dentro das suas casas, novas dinâmicas de divisão igualitária das tarefas. Muito pelo contrário. Elas estão tendo que ficar com um computador do lado e os filhos do outro, estão tendo que fazer tudo. Estão tendo que cuidar das aulas online do filho. Mas, essa dinâmica que sempre aconteceu, agora de forma intensificada, não está fazendo elas olharem para o trabalho doméstico, em si, de outra forma. Talvez isso apareça, em algum discurso, mas não na valorização do trabalho. 

Na pesquisa que eu fiz ano passado, elas me falavam coisas do tipo assim, por exemplo, depois de comprarem robô, aspirador de pó. “Ah, o robô é maravilhoso, ele me salvou o tempo”. Aí eu falava assim: “Mas e o robô limpa tudo?”. “Não, não limpa tudo, ele não limpa o box, ele não lava privada, ele não vai lavar as coisas e tal”, me respondiam. Elas diziam que o robô não fazia essas coisas e falavam: “Mas, oh, sinceramente eu não também não lavo. Eu chamo a empregada, chamo diarista, ela vem uma vez por mês e é ela quem vai limpar o box”. Então, assim, o que que mudou da minha tese para cá? É a trabalhadora que ainda precisa limpar o box bem e tirar com a escovinha de dente todo um mofo dali, pois a pessoa que estava dentro da casa, ela não vai se meter a limpar o box. Então, há uma ideia de perfeição diferente, extremamente distinta, quando você faz a tarefa doméstica e quando outra faz. Os seus padrões de limpeza, quando você está tendo que pegar o pano de chão e passando no chão, são muito diferentes. Isso não mudou na pandemia. Uma das primeiras coisas que se deveria pensar, em termos de reconhecimento desse valor do trabalho doméstico, é a contratação formal da trabalhadora doméstica. Por meio da contratação formal, você garante a ela o acesso a diversas proteções laborais e direitos. Mas, não teve uma percepção de ampliação de formalização durante a pandemia, muito pelo contrário. 

Nesses casos, a cultura doméstica está definida de modo que não conseguimos mais ver nossas vidas sem ela?

Eu acho que a cultura doméstica tem total potencial de mudar e ser transformada pelas trabalhadoras domésticas. Por elas, é elas que vão falar: “eu não vou aí pra te servir o café da manhã não, então eu não vou ficar cortando a fruta pra você comer a tarde”. Por elas, agora é essa questão. O que é possível criar de avanço? Só é possível criar avanços se você tem uma base socioeconômica que garanta isso. Porque, se essas mulheres voltarem a passar fome, elas não vão conseguir estabelecer determinados “nãos”. Essa é uma questão extremamente importante de ser colocada. 

Agora, do outro lado, se a a classe média, as mulheres brasileiras que têm penalizado essa cultura doméstica dentro delas, se elas conseguirão compreender a vida delas sem essas mulheres... Eu acho que não. Quando, por exemplo, uma patroa me fala “Eu prefiro ter uma fruta verde em casa, do que ter que limpar a casa no final de semana, limpar o box” é isso que a gente percebe.Eu posso fazer minha limpeza, mas quem pode pegar no pesado é a trabalhadora doméstica. Acho que elas levam até o limite a ideia dos padrões que foram criados, que elas querem. Mas, quem vai manter esses padrões são outras mulheres. Elas vão repassar isso porque os padrões são elevados demais, até mesmo para elas mesmas, né? É uma cultura doméstica que, de fato, aprisiona essas mulheres nesse ideal dessa casa perfeita. E, na pandemia, a casa está em evidência, né? 

Estamos falando desse aprisionamento de mulheres em padrões elevados demais. Onde o feminismo ainda é contraditório ao pensar o trabalho doméstico - remunerado ou não?

Essa questão do feminismo tem mudado bastante nos últimos anos. Acabei de fazer um estudo da década de setenta, oitenta, em que já se mostrava que existia um diálogo, pelo menos uma sensibilidade das demandas das trabalhadoras domésticas. Entre as feministas, já existia uma sensibilidade, mas existia uma falta de coordenação, uma falta de aproximação em termos de criar, realmente, estratégias políticas. 

Nos últimos anos isso tem mudado. Acho que, principalmente, a maneira como o feminismo negro também intervém nisso é importante. Mas, ainda não é algo efetivo. Se você pega os coletivos feministas, ONGs feministas, na última semana, que foi a semana da trabalhadora doméstica, quase nenhum deles não fez um post, uma declaração, uma nota, falando da importância do trabalho doméstico para sociedade brasileira.Por outro lado, muitas das ONG feministas estavam apoiando mesmo a luta das trabalhadoras domésticas, com doação de cestas básicas, kit de higiene, ajuda de pressão ao poder, criando uma determinada aliança. Agora, uma coisa é você pensar essas relações sempre de uma forma pública, né? Agora, o que a gente pode colocar como uma contradição olhando para dentro das nossas casas, enquanto mulheres feministas, talvez seja o principal desafio. Dentro de casa, nem sempre o feminismo consegue fazer uma revolução. E, aí, acho que talvez o trabalho doméstico remunerado seja um dos pilares para se enxergar isso. Então, nessa relação cotidiana, às vezes, a gente pode entender, pode compreender que esses processos de emancipação demoram muito mais tempo.

Essa relação acontece da mesma forma com patroas mulheres que se reconhecem feministas? 

Ano passado, entrevistei algumas mulheres que se entendiam feministas. Mas, não faziam contratação formal da trabalhadora. Essa é a principal questão para se pensar. É tanto questão de classe, quanto do esgotamento das mulheres de classe média, na pandemia, que se viram não mais tendo acesso a alguns processos de delegação. Mas, a questão da classe não some e as empregadas domésticas não deixam de estar ali.

Então, por exemplo, eu já escutei mulheres que se entendiam feministas dizerem assim “Olha, pra mim não faz diferença se a empregada vem de ônibus para o trabalho, qual é a diferença?, ela já está acostumada, está pegando ônibus para outras coisas”. Você começa a achar que trabalhadora pega um transporte público fechado por uma hora e meia pra trabalhar na tua casa e o problema não é seu. Mas, é você que está submetendo-a a isso, né? É uma responsabilização e o restante, tentativa de se desculpar.

Como eu posso, então, viver em termos de feminismo tendo essa relação? Eu acho que, assim, o processo formal do trabalho doméstico, mas também essa relação cotidiana, mal estão em pauta. 

A gente pode criar determinadas configurações, dentro desse processo de desigualdade. As diaristas não têm direito a todos os benefícios, né? Então, por que não se pensar as possibilidades de vínculo de trabalho? Seria interessante. Olhar para o MEI, mesmo sendo um processo precarizado, pode ser uma possibilidade mínima.  

Há estudos que mostram que as empregadas são “amortecedores” para o sucesso profissional da mulher de classe média. Uma coisa ainda está atrelada a outra? 

Enquanto a gente não tiver o estado fortalecido, que vá propiciar políticas públicas eficientes, sem dúvida. Sem dúvida alguma. Sem dúvida alguma. Se gente pensar, por exemplo, que num futuro bem próximo, nós vamos ter mais pessoas envelhecidas do que jovens do Brasil e nada está sendo feito a respeito disso... O que que o Estado está fazendo pra isso? Nada. 

Nós não temos instituições de saúde, de cuidado para idosos. O acolhimento dessas pessoas não existe e muito menos a saúde pública vai dar conta de todas as demandas da população mais idosa. Quem vai cuidar desse idoso? Quem? A família, sim, filho, filha, ok, mas como que ela vai cuidar? Ou alguém vai ficar cuidando desse idoso, ou vai contratar alguém para cuidar desse idoso? Sim. Porque o Estado está mostrando para a gente que ele não tá fazendo nada. As mulheres vão ser chamadas para o trabalho doméstico, remunerado ou não, ou alguém da família vai ter que ficar em casa para dar conta de tudo. 

Mas, você acha que existe possibilidade de um trabalho doméstico justo e feminista não só no discurso, mas na prática? 

Acho, acho, acho super. A primeira coisa que o movimento sindical de trabalhadoras domésticas fala é que não quer que o trabalho doméstico acabe, quer outras relações de trabalho. Então, acho que essa é uma das possibilidades feministas. Porque existe essa contradição das pessoas acharem que, no mundo feminista, o trabalho doméstico não existiria. Não existiria onde? No Brasil, que está numa posição econômica extremamente desfavorável? Aqui, é praticamente impossível para as mulheres não pensarem em modelos de delegação para empregadas.

Como que uma feminista poderia pensar maneiras de se relacionar com o trabalho doméstico remunerado? Primeiro, formalizando o trabalho doméstico remunerado, aplicando uma jornada de trabalho justa - porque, muitas vezes, as tarefas domésticas são feitas em cargas horárias exaustivas, até a casa toda estar limpa. É extremamente importante pensar em formas de respeito, em formas de estabelecer relações não hierarquizadas. Parte de uma mulher reconhecer que aquela também é outra mulher, que também tem uma família. Acho isso muito importante. A própria ideia do salário deve ser repensada. Será que determinados setores das classes médias só podem mesmo pagar um salário-mínimo por esse tipo de trabalho? Tem até um guia que foi lançado ano passado, da patroa feminista, que diz, tipo assim: no lugar de ficar comprando sapatos e bolsas, por que não aumenta o salário da trabalhadora doméstica? A compreensão da formalização, a compreensão das tarefas domésticas, a ideia de uma jornada de trabalho justa, precisam ser praticadas. É estabelecer relações de trabalho com respeito, sem ser paternalista. 

E o quanto as exigências de um padrão feminino - unhas bem feitas- cabelos bem penteados - estão ligadas à cultura doméstica? 

Essa é uma coisa excelente de se pensar e questionar. Sem dúvida alguma a casa é vista como o espaço constituidor de determinadas identidades de feminilidades, para se pensar a mulher, o feminino. A cozinha, as tarefas domésticas, são delegadas como coisas para as mulheres. Ao mesmo tempo, existe esse padrão estético esperado das mulheres, e as mulheres começam a compreender que essas duas coisas não vão conseguir andar juntas. A unha bem feita vai se desgastar se você lavar louça.Então, quando que os seus próprios desejos enquanto se veem como mulheres bonitas, descansadas, vão se agregar a ideias de que elas não são responsáveis pelas tarefas domésticas e de cuidado? É uma questão.Outra questão é mostrar a relação dessas duas mulheres, patroa e empregada. Teve uma empregadora que, na época do meu doutorado, me falou que a empregada ia bonita demais para o trabalho, arrumada demais, e que também ela precisava se arrumar, para receber a empregada. Existia um incômodo com trabalhadoras que entravam nas casas das patroas, faziam o trabalho e estavam impecavelmente lindas. Não era uma situação confortável para as patroas. Existe uma ideia de que se a pessoa está executando trabalhos domésticos não tem a possibilidade de preservação da beleza.

Se é tão fundamental, embora tão complexo, por que o trabalho doméstico ainda é tão desvalorizado?

Não tem como pensar essa pergunta sem pensar os padrões de valorização e reconhecimento que os trabalhos domésticos têm na nossa sociedade. Não tem como dissociar o fato das tarefas domésticas e de cuidado, dentro da casa, feito pelas donas de casa, não ser valorizado, falando em dinheiro mesmo. Historicamente, o trabalho doméstico não é remunerado e isso vai causar uma desvalorização como um todo, inclusive para quem faz esse trabalho remunerado.

Quando a gente pensa, com a experiência do auxilio emergencial traz a ideia de que mulheres que fazem as tarefas domésticas, mas como donas de casas, vemos uma possibilidade de renda e emancipação mínima. Existe um reconhecimento que precisa vir com a remuneração e precisamos pensar que a falta disso está vinculada a uma profunda desigualdade de gênero.

Não é à toa que você não vai remunerar esse trabalho. Você não vai remunerar, porque é feito por mulheres. É interessante para o mundo machista que permaneça dessa forma.  

Essa relação entre a mulher gerenciadora do lar, e a empregada, necessariamente vai gerar conflitos?  

Eu acho que sim. Por exemplo, na minha tese, e em alguns relatos, eu já ouvi trabalhadoras domésticas que se sentiam mais donas da casa do que a própria empregadora no sentido que ela pegava coisas da dispensa e dava para outras pessoas, por exemplo. Num certo sentido, essa desigualdade intersecional de gênero, clássico, raça, vai acabar sobressaindo.

Você acha que, dito tudo isso, a pandemia mostra alguma oportunidade ou possibilidade de mudança para o trabalho doméstico?  

Existem as duas coisas. Tem sido uma tragédia, mas o que a gente pode ver para além da tragédia? Um aspecto é o fortalecimento do próprio movimento sindical. Isso é interessante de ver: como que o movimento sindical sai fortalecido da pandemia ou está fortalecido durante a pandemia, porque nós ainda não saímos dela. As trabalhadoras domésticas que não eram sindicalizadas começam a ter mais acesso a esse conhecimento. As sindicalistas começam a ter mais acesso para estabelecer políticas, por outras vias institucionais.Agora, se a gente for pensar isso tudo no âmbito privado, dentro de casa... Pela minha última pesquisa, ficou perceptível que as mulheres valorizaram as escolas e creches, mas não os trabalhos domésticos remunerados.Elas olham para casa e entendem que para elas trabalharem bem precisam ter o filho delas na escola, não a casa limpa. Mas, isso não significa que deixaram de ter a casa limpa. O processo de valorização passa muito mais pelas escolas, pelas creches, pelos professores, do que necessariamente pela trabalhadora doméstica e vulnerável. Interessante isso, porque quer dizer que eu valorizo mais a escola, que, de fato, é importante, mas ao mesmo tempo não vou abrir mão de colocar a empregada para cumprir certas funções.Com isso, eu não estou falando que está fácil para as mulheres não. A cada entrevista que eu fazia nessa última pesquisa, eu só pensava: graças a deus que não tenho filho. As mulheres estavam enlouquecendo, principalmente as que estavam com os filhos pequenos dentro de casa.Então, eu não estou diminuindo em absolutamente nada todo o caos que se tornou a vida das mulheres de classe média durante a pandemia. Mas, por que a educação é colocada em destaque e não o trabalho doméstico não? Porque a escola, para a classe média, é compreendida como um espaço de consolidação de um estilo de vida.

A classe média vê a educação como possibilidade simbólica para seus filhos permanecerem enquanto classe média. Por isso, o terror de se pensar crianças longe da escola nesse contexto. Essa entrada na escola é muito importante, mas o box do banheiro também não vai ficar sem lavar, ele vai para a empregada, entendeu? Então, eu acho que a pandemia não trouxe novas possibilidades de trabalho, mostrou que novas percepções ainda precisam acontecer, serem atingidas.