O dia em que o futebol vendeu seus princípios

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Publicado em 17 de janeiro de 2019 às 12:12

- Atualizado há um ano

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“Que os senhores do futebol vendam os direitos dos jogos, mas não se permitam negociar os das mulheres”. A autora da frase, Laura Boldrini, pode ser uma mera desconhecida de nós brasileiros, mas é uma deputada italiana de 57 anos, ex-presidente da Câmara dos Deputados, ex-porta-voz da ONU para os Refugiados e voz influente no país europeu. 

A forte onda de imigração é um dos assuntos que mais preocupam os italianos nos anos recentes. Só que dessa vez, foi um movimento migratório no sentido inverso que deu o que falar. O que isso tem a ver com esporte? Tudo. Ontem, a final da Supercopa da Itália entre Juventus e Milan não foi disputada em Turim nem em Milão, e sim na cidade de Jeddah, na Arábia Saudita. 

Por um contrato de 7 milhões de euros, a Liga Italiana causou a indignação de Laura Boldrini e de muitos outros italianos, mulheres e homens. A mesma Liga que em novembro promoveu uma ação de protesto pela crescente violência contra a mulher no país se comprometeu a realizar três edições da Supercopa da Itália exatamente numa nação que não permite a entrada de uma mulher no estádio de futebol a menos que esteja acompanhada de uma figura masculina.

É um recado claro, e nefasto, de que o futebol italiano negocia não só jogos, mas também princípios. Aconteceu ontem e acontecerá mais duas vezes nos próximos quatros anos, de acordo com o contrato assinado entre a Liga e a General Sports Authority, entidade que rege a modalidade na Arábia Saudita.

Dois tipos de ingresso foram vendidos para a partida, vencida pela Juventus por 1x0, gol de Cristiano Ronaldo. Um era o bilhete “single”, ou seja, para uma pessoa. Neste setor, localizado mais próximo do campo, só homens podiam entrar. O outro era o bilhete “família”, único que as mulheres podiam comprar – e localizado no setor mais distante.

O futebol precisa ser maior que isso. É por princípio, é por moral, por valores intrínsecos ao esporte que não se contam em cifras. Respeitar costumes de diferentes povos é uma coisa, mas submeter um evento entre dois times italianos que nada têm de afinidade com as leis do país árabe mais restritivo do mundo para as mulheres é um erro grave. É colocar o dinheiro acima da razoabilidade ocidental.

Vale lembrar que nem todos os países árabes têm os mesmos costumes dos sauditas. No Catar, por exemplo, onde vai ser disputada a próxima Copa do Mundo, em 2022, as mulheres podem ir a estádios. Já no Irã, não podem, desde a revolução islâmica de 1979. O assunto divide os políticos do país e, em novembro do ano passado, elas foram liberadas para assistir à final da Copa da Ásia. Ainda assim, em um local reservado dentro do estádio, sem se misturar com os homens.

A Arábia Saudita ainda tem passos demais a caminhar quando o assunto é igualdade de gênero. Lá, mulheres só foram autorizadas a dirigir um carro em junho de 2018, proibição que não existia mais em nenhum canto do planeta. A restrição de só poder frequentar uma ala “família”, utilizada no estádio, vale também para um restaurante, por exemplo. Outras ações banais também só podem ser feitas com anuência de um homem da família, como viajar ou abrir uma conta bancária. 

Se os dirigentes do futebol italiano tivessem usado a Supercopa da Itália para derrubar ao menos uma barreira, teriam feito um favor à humanidade. Mas pensaram apenas no dinheiro.

Herbem Gramacho é editor de Esporte e escreve às quintas-feiras.