O gato imaginário de Schroedinger

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  • Kátia Borges

Publicado em 5 de janeiro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Um amigo de infância acredita que venci. Nos encontramos outro dia e ele me festeja assim. Faço que sim, sinto que não. Noto que ele se alegra verdadeiramente. Mas em que consiste, meu amigo, uma vitória? Há quem tenha fé em que se vence realmente alguma coisa? Como o conceito é vago determinamos critérios de distinção e pódios. Aos vitoriosos, as batatas, as medalhas e os penduricalhos da “vida pública”.

Lugares de memória. Aprendemos o conceito na escola. Na prática, fora da comparação com os outros, não há vitórias ou derrotas. “Vou mostrando como sou e vou sendo como posso”, como diz a música. Dividir o mundo entre vencedores e vencidos só faz sentido nos livros antigos de história (e já descontruímos isso). Sou dos que acreditam que a grama verde do vizinho é uma questão metafísica.

E aqui lembro um dos contos que mais gosto de Clarice Lispector. Foi publicado em Laços de família, originalmente na edição lançada em 1960. Narra o encontro entre um explorador francês e uma pigmeu grávida de 45 centímetros nas profundezas da África Equatorial e como a notícia da descoberta daquela que seria “a menor mulher do mundo” mexe profundamente com a imaginação dos leitores de um grande jornal.

Felizmente, não fui atingida pela iconoclastia besta em torno da obra de Clarice Lispector – imagino que ela responderia a isso com um longo bocejo. A vitória diária de cada um dos membros daquela tribo tão diminuta, eis o nexo, é não ser devorado por outras espécies. Estar vivo. A cada segundo, ao olhar o próprio corpo hirto, festejar: “não fui comido!”. Espero que entendam sem zoeira essa metáfora.

Os budistas propõem que a grande questão da existência é não haver questão alguma. Tudo apenas flui em nós e no universo. O sofrimento humano vem da resistência a esse fluxo. Se você tem dúvidas sobre isso, sugiro que tente segurar por muito tempo alguma coisa. Penso nisso e em que, no fundo, o que nos faz vencedores ou vencidos –

nas profundezas equatoriais do que somos – não faz muito sentido para os outros e nem sempre nos conduzirá a rankings ou pódios. Escrever, por exemplo.

Muitos não compreendem a insistência dos escritores na busca solitária e obsessiva pela frase perfeita que os permita escrever para sempre. Escrever é, de certo modo, pertencer a uma tribo de pigmeus entre gigantes. Festeje se você não foi devorado hoje. Amanhã nunca se sabe. Escrever é, sobretudo, brincar de morto e vivo.

E não, não me refiro à brincadeira da infância, mas ao gato imaginário do experimento mental de Schroedinger. Todo escritor, assim como o felino, está preso em uma caixa com uma cápsula de cianureto e um átomo radioativo. A ausência de observação mantém a superposição de possibilidades.