O homem com dramas e o cão sem plumas

por Rogério Menezes

Publicado em 18 de novembro de 2018 às 06:25

- Atualizado há 10 meses

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No pináculo de acerbo combate de esgrima entre mim e hamletianos fantasmas familiares – à beira de estocada fatal no baixo ventre enfiada por parentes sanguinolentos que em seguida gritariam ‘touché’ –, saio do transe. Respiro aliviado – ou quase. Circunstâncias dissonantes me devolvem à realidade. 1. A buzina tonitruante de caminhão de 16 rodas que mais parece dragão do mar no cio. 2. Corpo magro, mas ainda macio, de cão sarnento se esfrega na minha panturrilha direita, e esse carinho inesperado me acalenta e me acalma e me anima, desenho desanimado que me sentia.

Esqueço o dragão do mar tonitruante que parece cheio de pressa de chegar ao fundo do mundo, e me concentro no cão sarnento e malcheiroso que me afaga. Sinto-me reconfortado, quase emocionado. Deixo-me levar. Ele toma sem querer, mas tomando, as rédeas de minha caminhada e o sigo feito seguisse alguém que me livrasse de todas as trocentas tormentas nas quais ora nos afundamos do último fio de cabelo ao dedão do pé.

Vez em quando o cão sarnento me olha de soslaio, quer ver se ainda o sigo e meneia com a cabeça como se dissesse: - Vem comigo. Aproveite. Estou te adotando apenas por curto período. Daqui a pouco te deixo só somente só.

Flana o cão sarnento desavergonhado à minha frente, rabo enrodilhado voltado para cima, ânus à mostra, testículos balouçantes que fazem lembrar bolotas de gelatina de jabuticaba, pernas traseiras cotas – mesmo assim, o cão sarnento se arrasta como se puxasse carruagem.

O cachorro vira-lata morre de fome. Pele e osso. Nada mais. Mesmo assim, parece se sentir dono de mim por alguns fugazes momentos – e curte esses fugazes momentos – recua o passo – fareja  o mato molhado – faz xixi em postes – se roça carinhoso nas minhas panturrilhas – e segue em frente – e eu sigo junto – e vai, e vou, e vamos.

O cachorro que me conduz e me abduz está transido pela fome. Os olhos opacos não transmitem mais luz alguma. Parece cego só que não. Segue caminho sem tropeçar em nada. Cão sarnento, sem eira nem beira, parece pleno, sem nutrir rancores ou ressentimentos por ninguéns – eis cão absolutamente estoico, e eu tento sorver algo desse estoicismo – foi o destino que lhe coube neste latifúndio e o cão sarnento vai fazer o quê?  Se queixar ao bispo?  Ter ataque de pânico? Telefonar pro CVV? Invadir supermercado e metralhar 40 pessoas?

[Não, não mesmo – este é o nosso destino, destino destes seres degenerados que nos ocupam – os cachorros são d’outra cepa, d’ outro naipe, d’outra banda da terra, d´outro quilate, d´outra bolacha do pacote].

Quando já estou me apegando ao cão sarnento, ele me abandona. Sem aceno, sem bye bye, sem bolero, sem carinho de despedida, mergulha em montanha de lixo fedorento – e some – e eu fico a ver caminhões tonitruantes feito dragões do mar no cio singrando estradas que levam ao fundo do mundo – e eu volto a lutar esgrima com fantasmas hamletianos familiares até que, enfim, em modesto mas sacrossanto lar, ducha gelada me pacifica e me faz descansar em paz, rapaz.