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Publicado em 11 de novembro de 2018 às 05:00
- Atualizado há um ano
Há quem me chame de ‘o homem que anda’. Caminho todas as manhãs, em horários diversos, às margens de grande avenida que dá acesso às rodovias estaduais. Motoristas, motociclistas, e caminhoneiros me buzinam. Pessoas a pé me cumprimentam. [Uma vez, senhora serelepe espichou o pescoço para fora do carro velhusco, em perigosa curva, e gorgolejou: - Gosto de ver. Todo dia andando aqui. Te admiro].
Deve haver gente que me ache ‘metido a besta’ – expressão usual no sertão para se referir a gente esnobe. Às vezes não respondo aos acenos e cumprimentos. Em minha defesa alego: - A endorfina acelera o pensamento e, em certos momentos da caminhada, eu divago, vago, vago.
Acontece. Em visitas à loja de meu irmão, sou apresentado a alguém e esse alguém dispara: - Já te conheço. Te vejo sempre andando na estrada que dá para a rodovia.
Ou seja, caminhar me empresta certa celebridade. Mais famoso como caminhador do que como escritor. Não me importo. No meio de caminhada eivada de insights, há sempre o que aproveitar na saraivada de reflexões turbinadas pela endorfina. [Muita coisa, no entanto, deleto, material de baixa qualidade. A gente pensa luxo e lixo].
Há algumas semanas me passou pela cabeça a seguinte bobagem – surfando na onda de radicalização política que marcou, e ainda marca, o nosso vilipendiado país: - Já que muita gente me conhece pelas minhas andadas diárias porque não virar prefeito desta joça? Quiçá nessa trilha torta minha vida tome jeito e eu alcance minha ansiada redenção?
Duzentos metros depois, já tinha slogan de campanha pronto: - O homem que anda vai fazer essa cidade andar! [6 de novembro de 2018. Manhã nublada, com garoa. 5 da manhã. Saio para caminhar, já convicto de que minha vocação não é fazer esta, ou outra cidade qualquer, andar. Basta que eu ande, e olhe e ouça ao redor. Sempre acontece algo ao redor, mas as pessoas ignoram, abduzidas por umbigos-celulares].
Ora redijo este minirrelatório. Ocorreram outros fatos, mas preciso selecionar. Viver é editar. Escolha 1: filhote de gato desfila à beira do asfalto. Tento salvá-lo. Mas ele escapa e corre, sempre em direção à pista. Uso minha voz de mezzo-barítono. Berro: - Sai daí! Vá pra casa. Já! [Ele enfia o rabinho entre as pernas e volta ao lar].
Escolha 2: alcanço homem e mulher que caminham juntos. Ela: - Meu avô não confiava em homem com dois nomes, tipo Carlos Alberto ou Renato Augusto. Dizia que era tudo ladrão de cavalo!
Não tenho nome duplo, mas acho a história tão estapafúrdia que a interpelo: - Eu ouvi bem? Verdade? A moça responde: - Sim, coisa de gente de antigamente. Não teve quem tirasse essa ideia maluca da cabeça dele. Morreu acreditando.
Imerso na tentativa de entender porque o avô daquela moça chegara a conclusão tão inusitada, esqueço carreira e slogan políticos. Em vez de político, escritor – talvez com slogan mais condizente com meu estado d´alma: o homem que garimpa histórias.
Na verdade, histórias parecem me garimpar e me pedir: - Escreva sobre mim! [Apenas obedeço].