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Paulo Leandro
Publicado em 25 de setembro de 2017 às 10:13
- Atualizado há um ano
Tá no Livro 2 da República de Platão: Giges era pastor de ovelhas e achou um anel. Giges percebeu que, quando usava o anel, ficava invisível. E, assim, Giges, um homem bom e pacato, tornou-se assassino e mau. Sem ser visto, Giges tornava-se outra pessoa.
O juiz de futilbol talvez se imagine um Giges, mito fundador da moral. Podem passar o lance em câmera lenta 200 vezes. E o juizão 200 vezes fará de conta que não é com ele. Talvez se ache invisível. Só tem um porém: cadê o anel de Giges?
Invisível ou não, agora, o juizão vai poder parar o baba e rever o lance na telinha para marcar certo. O deus digital - não furtarás! - opera o tecno-milagre na fé do que há de mais sagrado desde a Santa Ceia: a arbitragem de um jogo de futilbol.
Não é tão simples como parece. É preciso que o árbitro preserve seu poder de decidir. Se o deus digital decidir por ele, vamos combinar que desistimos da ética. Já é assim com os radares, que engordam o erário público multando nossa estupidez ao volante.
O mesmo radar que melhora o trânsito decreta a falência da educação. Não é o cidadão, consciente, que decide reduzir a velocidade por sua vontade, como ocorre em uma escolha moral; ele o faz por receio de ser punido. Sem radar, o motorista pisa fundo.
O mesmo ocorre com as câmeras. Filmado, o meliante pode ficar inibido. Em um local sem câmeras, o larápio não sabe anular o desejo de roubar com a vontade de não roubar: assim, comete o crime. Ninguém está vendo. O ladrão vence o cidadão.
No futilbol, se o juiz permitir que a máquina tome o apito de sua boca, não há mais necessidade do debate ético incessante visando ao trabalho certo e justo de Sua Senhoria. A educativa cobrança dos torcedores já não será necessária. É a tal perfeição!
Ao trocarmos a dimensão mundana do apito pela telinha divina, decretamos o desprezo pela ética, entendida como combinação compartilhada de valores e princípios; e a morte da moral, como atributo pessoal e intransferível sobre toda ação que decidimos.
Ah, mas os juízes roubam! Decerto que sim: e como faria falta ao futilbol o juiz ladrão! Ó, preciosa metáfora de nosso cotidiano de imperfeições e humanidades! Sem ladrão, o torto - e belo - futilbol seria quase um - argh – vôlei, basquete ou até um remo: re-mo!
Nelson Rodrigues já denunciou, na crônica O juiz ladrão, esta “figura alvar e canalha”: aceitava dengo dos dois times e, ao perceber o efeito do rolo em que se metia, saía a pular cercas por aí, tão logo encerrado o prélio duplamente surrupiado de um e de outro.
Sem o juiz ladrão, substituído pelo big brother, que despreza o olho e o olhar humanos, o futilbol perde seu poder de indignação como valor diante dos erros. Só há ética se combinarmos juntos como queremos as arbitragens. Com juiz ladrão ou sem juiz ladrão.
A admirável era digital, pronta a evitar os erros do juiz ladrão, nos desperta, dois séculos depois, do sonho iluminista de uma humanidade capaz de controlar sua liberdade inata com o dever de agir, deliberado por cada um de nós, sem anel de Giges.
Que ninguém ouse roubar nossa consciência: nenhum charlatão, radar ou máquina de apitar! Ética se constroi na repactuação incessante de valores para o bom convívio. Não peçam para melhorar a arbitragem nunca mais, se ficarmos dependentes do deus digital!
Paulo Leandro é jornalista e prof. Dr. em Cultura e Sociedade.