O lugar de onde viemos nunca nos abandona

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  • Paulo Sales

Publicado em 21 de junho de 2021 às 05:04

- Atualizado há um ano

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Hoje acordei mais cedo e fui com minha filha à praia. O céu, em parte tomado por nuvens escuras, logo deixou o sol sair. Aos meus pés, a água morna da maré quase cheia só reafirmou o sentimento de amor que eu tenho por minha cidade. Lembrei da infância, quando jogava bola com meu pai e meus irmãos nessa mesma praia, e de como os domingos em família eram prazerosos. Lembrei da adolescência, quando frequentava a praia quase diariamente, ao invés de estudar matemática.

Gosto do clima de Salvador. Dos seus invernos amenos, que permitem um banho de mar enquanto em outras capitais as pessoas vestem casacos e gorros. Gosto da luz no outono, quando os raios de sol projetados sobre ruas e prédios produzem tons amarelados, ligeiramente esmaecidos. Gosto de andar por suas ruas, passear por bairros que ainda me fascinam e produzem ligeiras epifanias, mesmo os conhecendo tão bem.

Já morei em outra cidade: a dura e febril São Paulo. Em alguns momentos, a saudade doía como uma ferida. Saudade da comida de casa, do mar onipresente, do vento morno, do sotaque que consegui conservar. Saudade da minha essência. Acalento o sonho de um dia morar em Paris ou Lisboa, onde também me sinto em casa. Mas sei que viver por lá durante meses ou anos a fio certamente mudaria essa percepção. Minha casa se chama Salvador, e jamais abdicaria do eterno retorno à raiz soteropolitana.

Lamento os que precisam abandonar, pelos mais variados motivos, a cidade que amam. O exílio pode ser terrível. Penso em Caetano, que deixou o Brasil brutalizado dos anos de chumbo para enfrentar invernos inóspitos e uma saudade devastadora em Londres. Sofrimento que se traduziu em lamentos pungentes, naquele disco belo e triste de London London e If You Hold a Stone, reproduzindo nesta última os versos de Paulo Diniz: “Eu não vim aqui /Para ser feliz /Cadê meu sol dourado? /Cadê as coisas do meu país?”.

Por sorte Caetano voltou depois de pouco tempo. Mas e quanto aos que foram embora para sempre, expelidos dos seus lares, destituídos da terra em que forjaram suas vidas? Como deve ter sido duro o caminho dos judeus expulsos pelo nazismo, abandonando casas, negócios e economias para escapar com a família da morte certa. Ou daqueles que saíram corridos da Espanha franquista, da Cuba de Castro, da URSS de Stálin.

Trotski, coitado, foi um deles. Perseguido implacavelmente, sequer conseguiu viver em paz no desterro, depois de peregrinar por terras estrangeiras que não o queriam. Foi morto com um golpe de picareta por um militante a mando de Stálin, na fortaleza em que vivia no México. O revolucionário russo descobriu, da pior maneira possível, que mesmo que abandonemos o lugar de onde viemos, ele nunca nos abandona.

Hoje vemos as migrações em massa. Populações inteiras em debandada deixando prédios destruídos por bombas ou cidades assoladas pela fome. O eldorado não existe, mesmo que consigam ultrapassar os traficantes de pessoas, as travessias arriscadas em barcos precários, a polícia de fronteira, os campos de refugiados. Serão sempre estrangeiros, vistos com desconfiança por sua crença ou sua cor. E o pior: não há volta possível. Como diria Drummond, o mundo que deixaram para trás é só uma fotografia na parede. Mas como dói.