O pior lugar do mundo é aqui. E agora

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  • Paulo Sales

Publicado em 8 de março de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Tento abstrair, falar de livros, canções, reminiscências, cravos e girassóis. Até para não dizerem por aí que não falei de flores. Tento ver o copo meio cheio, mas ele está oco, despovoado de sentido, despido de sensatez. Ouso contradizer Gilberto Gil e canto: o pior lugar do mundo é aqui. E agora. Mas Gil, com a sua sabedoria de Buda dos trópicos, me ensina: “É sempre bom lembrar /Guardar de cor /Que o ar vazio /De um rosto sombrio está cheio de dor”. Qual a estatura da nossa dor, a sua espessura? Qual o volume ocupado pelo sentimento coletivo de perda, cólera e impotência? Qual a extensão da desdita diária que vivenciamos?

Por muito tempo a história nos permitiu indagar: como a Alemanha dos anos 30 e 40 aceitou tão passivamente o mal absoluto? Como foi possível a um demente sem caráter e sem escrúpulos chegar tão longe? Como foi possível que permanecesse por tanto tempo – braço em riste, olhar delirante –, levando à derrocada o seu país e grande parte do mundo? A resposta, meu amigo, está soprando no vento. Na brisa morna de cada tosse, cada espirro, cada toque na pele alheia que espalha o vírus letal por todos os cantos do país.

Somos a repetição de uma tragédia, agora deslocada do centro do mundo para uma nação periférica, desimportante. Não é farsa, como sugeriu Marx, é tragédia mesmo. O Brasil não se tornou apenas o ambiente perfeito para a propagação de um vírus. Contemplamos, inertes e impotentes, a proliferação da mais vil manifestação de demência coletiva da nossa história, protagonizada por um tipo desprezível, sórdido, cínico, patético, torpe, abjeto – adjetivos que, mesmo desferidos em sequência, não dão conta de mensurar a sua psicopatia e a nossa vergonha, o nosso estado de desespero. A lucidez pisoteada, retorcida, calcinada.

Não sei onde essa escalada de ódio vai terminar. Há soldados armados, fardados ou não, quase todos perdidos de armas na mão. Esse exército de idiotas cresce a cada dia, amontoa-se nas ruas, manifesta-se em brigas de trânsito e, principalmente, corrói a já vulnerável democracia, ferida de morte desde a ruptura institucional de 2016. Por entre florestas incineradas, cadáveres amontoados e mansões de R$ 6 milhões, nós vamos, por que não? Rumo ao desastre que não mais se pressente: tornou-se realidade. Crônica de uma catástrofe anunciada, tão evidente que cegou 55 milhões de incautos.

Isolados em casa, armados de panelas inócuas e vociferando frases raivosas que ricocheteiam nas redes sociais, prosseguimos num mar de excrementos até o pescoço. Mas tudo vai bem, vai tudo muito bem. Vai tudo muito mal. A cidade de cujo ventre eu nasci agora está deserta. Praias isoladas, famílias confinadas, UTIs abarrotadas. Em todo o país, pulmões debilitados lutam contra a asfixia com ou sem a ajuda de aparelhos. Mas e daí? A canalhice orgulhosa de si mesma avança com todo seu tenebroso esplendor.

Penso em Primo Levi, o gênio italiano sobrevivente do Holocausto, e no poema que ele dedicou a Adolf Eichmann, o faz-tudo do nazismo, o tipo vulgar e burocrático que inspirou Hannah Arendt a cunhar o termo banalidade do mal. Transporto o seu desejo de vingança para a nossa atualidade: “Ó filho da morte, não lhe desejamos a morte /Que você viva tanto quanto ninguém nunca viveu /Que viva insone cinco milhões de noites /E que toda noite lhe visite a dor de cada um que viu /Encerrar-se a porta que barrou o caminho de volta /O breu crescer em torno de si, o ar carregar-se de morte.”