‘O povo deve se apossar da literatura como um direito’, diz Conceição Evaristo

Convidada da 1ª Festa Literária do Subúrbio (Flisu), autora exalta a produção marginalizada

  • Foto do(a) author(a) Laura Fernades
  • Laura Fernades

Publicado em 18 de fevereiro de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação

A prepotência passa longe da escritora mineira Conceição Evaristo, 74 anos, uma das autoras mais aclamadas do Brasil, hoje. Homenageada do Prêmio Jabuti de 2019, e finalista do mesmo prêmio em 2015, a escritora faz questão de manter o pé no chão e indica aos jovens escritores que façam o mesmo. Convidada da 1ª Festa Literária do Subúrbio (Flisu), dia 26, entende sua participação como um lembrete de onde veio.    “Participar da Flisu é não esquecer meu lugar de origem, meu lugar de inspiração”, explica a autora que viveu a infância e boa parte da juventude “na favela”, onde se formou “esse sujeito mulher negra”. “Meu labor literário nasceu de um lugar marginalizado”, reforça Conceição, que fará a conferência de abertura do evento dedicado a dar voz à literatura insurgente e marginalizada.    Autora de Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006), Conceição conquistou o terceiro lugar no Prêmio Jabuti 2015 com o livro de contos Olhos D’água (2014). Com uma obra de referência na luta contra o machismo e o racismo, traduzida para o francês, espanhol e árabe, a escritora defende que “a posse da Língua Portuguesa não pode ficar restrita aos muros de uma universidade”.    “As classes populares devem se apossar da literatura e da escrita como um direito do cidadão e da cidadã”, defende Conceição, Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Em entrevista ao CORREIO, a autora fala sobre o poder da literatura, defende a produção marginalizada e critica a hegemonia do homem branco. Confira. (Foto: Divulgação) O que representa, para você, participar de uma festa como a Flisu que exalta a literatura produzida em uma região historicamente marginalizada de Salvador?  Participar da Flisu, para mim, é confirmar o meu espaço de pertença. Um lugar marginalizado de Salvador é um lugar marginalizado de Belo Horizonte, do Rio, de São Paulo, de João Pessoa. As grandes cidades têm os seus lugares de luxo, de riqueza, de poder político e cultural, e seus lugares onde a vida é uma eterna demanda por direito à vida. Uma parte da cidade tem seus bens culturais fortes, outra parte da cidade sobrevive ou cria teus bens culturais e se organiza a partir da carência. Participar da Flisu é não esquecer meu lugar de origem, meu lugar de experiência, de inspiração. Inclusive meu labor literário nasceu justamente de um lugar marginalizado. A minha experiência, tendo passado toda a minha infância e parte da juventude na favela, me formou. Sem sombra de dúvidas, esses lugares marginalizados construíram em mim esse sujeito da escrita, esse sujeito mulher negra.   Se sente responsável por abrir portas para outras pessoas que não têm o mesmo holofote?  Não sei se tenho todo esse poder. Talvez, se fosse dona de uma editora, por exemplo, se tivesse um capital para publicar as pessoas em início de carreira. Não é o meu caso. Acho que o meu feito se dá muito mais no nível do simbólico, quando convido outras pessoas a escrever, notadamente as mulheres negras. Talvez a minha ajuda se dê quando cito a literatura de outras e de outros escritores. Nesse sentido, insisto que precisamos criar uma rede de citação.    Pode destacar os benefícios?  Determinados escritores e determinadas escritoras postadas no lugar da cultura hegemônica, que inclusive define quem é escritor e escritora, de um modo geral conhecem a produção do seu círculo social. Então, quando eles têm que citar textos exemplares, ou opção para indicar para publicação ficam muito restritos ao grupo deles. Isso gera um certo vício. Quando outras autorias passam a participar desse sistema literário, temos oportunidade de citar autores que a gente conhece. De um modo geral, são autores que experimentam também um outro lugar social. Hoje, existe uma gama muito potente de escrita, de pessoas que estão entrando na literatura mais recentemente. Então acho que a gente tem esse compromisso de estar alerta com o que está aparecendo.    Qual é a importância de se valorizar a literatura insurgente, produzida fora dos padrões acadêmicos?  É apontar para a diversidade dos textos brasileiros. Não só do ponto de vista do conteúdo do texto, mas da própria prática da escrita. E se considerarmos que o Brasil é um país multicultural, multiétnico, a literatura brasileira não pode ser representada somente por uma autoria, notadamente de homens brancos. A literatura brasileira, para ter o rosto brasileiro, ela tem que ter a escrita e a palavra do brasileiro em toda a sua diversidade. Inclusive, o modo diferente do brasileiro se apropriar da Língua Portuguesa. Por exemplo: o modo que um professor universitário ou um escritor das classes privilegiadas se apossa da Língua Portuguesa é diferente do modo como um sujeito da periferia se apossa. A academia cria determinados padrões que nem muitas das pessoas que estão dentro dela, no que diz respeito à Literatura, desenvolve. Acho que a academia não forma literato. Ela pode ajudar, mas não é o único lugar ou lugar primordial.Se considerarmos que o Brasil é um país multicultural, multiétnico, a literatura brasileira não pode ser representada somente por uma autoria, notadamente de homens brancosQuais exemplos estão fora desse universo?  O grande exemplo disso é a competência dos autores de literatura de cordel, os repentistas, essa meninada do rap. São criações, autorias, em que as pessoas sabem lidar com as palavras de uma maneira muito mais dinâmica do que muitos que fazem um curso de Letras. A posse da Língua Portuguesa, da leitura, da escrita, não pode ficar restrita aos muros de uma universidade. O povo, as classes populares devem se apossar da literatura e da escrita como um direito do cidadão e da cidadã. O povo, as classes populares devem se apossar da literatura e da escrita como um direito do cidadão e da cidadã.De que forma a literatura contribui para o enfrentamento do momento atípico que estamos vivendo?  Penso que nesse momento a literatura, como a arte, é um lugar de conforto, um lugar de desaguar as angústias pessoais e coletivas. Particularmente, para mim, o texto literário é meu lugar de conforto, de criação. A literatura tem esse poder, é o lugar de esperançar. Em termos pessoais e em termos coletivos, porque na medida que uma obra sai de uma criação individual e atinge, convoca o coletivo, esse coletivo fica sensibilizado, o sujeito da leitura se sente convocado por um texto escrito. É, então, um lugar de encontro, de tomada de consciência. Mais do que nunca, a literatura hoje, como a arte, oferece essa possibilidade de perdermos a nossa dureza e nos tornarmos mais comprometidos com a nossa vida e com a vida do entorno, do coletivo.  Quais lições podemos tirar da pandemia?  Fico pensando muito se o mundo como tal vai em bloco tirar lições da pandemia. Acho que em termos coletivos, em termos políticos, acho que uma lição que o mundo aprendeu é, mais uma vez, a dureza do capitalismo, a importância do dinheiro e como ele é benéfico para alguns e muito necessário e raro para outros. A gente tem dito que os problemas sociais no Brasil estão aí há muito tempo, mas acho que a pandemia revelou a situação das classes populares. Aí é só pensar na questão da saúde. A gente diz “a covid é uma doença democrática, ela não escolhe pessoas, sexo, classe social, qualquer um pode ser vítima”. Sim, mas a maneira de as pessoas tratarem a covid é diferente. As classes populares estão muito mais vulneráveis à pandemia, como em quaisquer outras situações que ameaçam a vida. Agora, que lição podemos aprender, em termos de mudarmos as formas de vida, só acredito que só tirou lição desse sofrimento todo quem tem uma tendência a aprender. Outros vão passar por isso e vão continuar da mesma forma.   Como a literatura foi transformada pela pandemia?  Talvez nesse movimento de introspecção. Dizem que as pessoas nunca leram tanto quanto estão lendo agora. A literatura ser transformada pela pandemia, ainda estamos em experimentação. Ou talvez a literatura foi transformada pela pandemia nessa questão do uso da internet. A produção de e-book teve um salto considerável, a situação das livrarias...   Qual mensagem você gostaria de passar para os jovens escritores e escritoras negros que têm sua obra como fonte de inspiração?  Primeiramente eu tenho que agradecer a essa juventude. Essa confiança que os jovens depositam em mim, me potencializa, me fortifica e mais do que isso: me certifica que minha vida e o meu trabalho valem a pena. Agora, um dos aprendizados que a juventude tem de prestar muita atenção é que nós não podemos confundir autoestima, capacidade, certeza da potencialidade, não podemos transformar esses sentimentos em prepotência. A prepotência impede que a gente perceba que ainda temos muito o que fazer, temos muito de crescer. A autoestima tem que existir, sim. Essa juventude precisa se imbuir dessa autoestima inclusive para não desistir, porque esse processo de aniquilar a nossa competência é antigo e hoje ainda continua. Se, por um lado, temos uma juventude que está aí produzindo, que está estudando, está trabalhando, temos também uma juventude que está vulnerável, que está impedida das suas esperanças e da sua perspectiva de vida. Nós temos muito de cuidar da autoestima dos jovens, mas também esses jovens não podem transformar essa autoestima em prepotência. Autoestima tem que me fortificar para que eu possa fortificar o outro e não para que eu massacre o outro.   Por que não é hora de desistir?  Acho que desistir agora é deixar ruir todo um projeto que vem sendo construído. Nossas conquistas levam tempo para serem edificadas, levam tempo para serem experimentadas e para produzir resultado, então desistir agora é invalidar toda uma luta e um processo que ficou pra trás. Desistir no presente é impedir o futuro de uma geração que vai vir de vocês, dessa juventude.