O teatro dos ladrões

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  • Malu Fontes

Publicado em 17 de setembro de 2018 às 05:57

- Atualizado há um ano

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Uma frase (ou seria uma fase?) clássica do universo estudantil, durante várias gerações, sobretudo entre os meninos, era a famosa: eu te pego lá fora. A cultura e as faces da violência brasileira tornaram-se tão fortes, orgânicas e incrustadas em todo o tecido social que já não há contexto para o “te pego lá fora”. Queira o que quer que se queira dizer com essa frase, o lá fora literalmente foi para dentro da escola, de todas as formas possíveis, inclusive com a violência se concretizando no grau máximo em plena sala de aula.

Entre alunos e professores, entre alunos e alunos, entre alunos, professores e criminosos, e entre alunos, escola e a polícia, que dispara contra estudantes fardados. Em Salvador, nos últimos dias, duas manchetes traduziram o fenômeno da violência decreto das escolas, com nomes, endereços. Um garoto de 12 anos foi baleado com dois tiros na quadra da escola. A família acusa a polícia. A polícia acusa o tráfico das imediações. Em outro bairro da cidade, vários estudantes, de várias escolas públicas e particulares, vêm sendo assaltados, nas cercanias das instituições ou dentro das salas, por garotos da mesma idade que eles, com um detalhe desnorteador: usando fardas estudantis. Algumas vezes, fardas de empresas.

Ator do crime Ler os fatos transformados em notícias é razão para um lamento à parte. Entrevistados creditam esses assaltos aos estudantes, por jovens usando fardas escolares, à inexistência de um contingente policial equivalente ao tempo de duração do funcionamento diário das escolas e em número de agentes proporcionais ao de alunos circulantes na área atingida pelos bandos. Que Estado social no mundo funciona se, para isso, necessitar de um contingente policial que dê conta, numericamente, da quantidade de alunos de um determinado bairro e de uma ação ostensiva durante todo o tempo de duração das aulas? Isso equivale a exigir do Estado praticamente um segurança pessoal para cada estudante.

O outro aspecto que alarma é o uso da farda escolar para assaltar. A farda, que significa um distintivo de uma condição social da intocabilidade, a do estudante em processo de formação cidadã, é duplamente descaracterizada. O policial que atira e mata o estudante real fardado, não vê no vestuário simbolismo algum. O estudante real, ao mesmo tempo em que teve a polícia por saber-se passível de ser confundido com um marginal apesar da farda, olha para a farda alheia e se perde na confusão entre o medo e o reconhecimento. O outro “estudante” logo ali é um aluno assustado, vulnerável, como ele, ou é um ator do crime, incorporando um estudante nesse teatro macabro das ruas, onde já não sabemos quem é quem, quem nos acolhe ou nos mata e no qual fardas, de escolas ou de empresas, são disfarces para facas, revólveres e assaltos? 

Coco e facão Infelizmente, conheci o teatro do assalto de uma forma ainda mais visceral, digamos, que a da versão farda. E nesse contato com ele, adquiri o medo da praia. Nunca mais coloquei o pé numa praia urbana de Salvador, acreditando na possibilidade de repetição da cena. Um vendedor de coco aproximou-se da cadeira de praia, colocou uma espécie de mochila preta bem velha ao meu lado e ofereceu o coco, que àquela altura já estava na areia, ao meu lado, ao lado da mochila. Diante do “não, obrigada”, o homem encostou em meu pescoço a lâmina do facão que carregava, e que mais se assemelhava a uma espada de samurai no formato, pressionava contra a minha garganta enquanto exigia, pagava e enfiava literalmente tudo na falsa mochila de cocos, já com coisas de outras pessoas. 

E, assim, o teatro da violência, que incluiu a personagem macabra do vendedor de cocos de araque, me afastou das praias. Também dessa forma, as fardas teatrais dos assaltos aos estudantes reais vão esvaziar muitas escolas. E cada vez que alguém sente medo de ir para a escola, uma nação se desmancha um pouco e se transforma num monstrengo social.