O testamento desaforado do senhor Souza Reis

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 25 de março de 2018 às 03:39

- Atualizado há um ano

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Quando o escritor Souza Reis morrer de morrer de morte morrida não quer choro nem vela – mas avisa aos circunstantes, afetos e desafetos: goza de boa saúde, caminha todos os dias cantarolando ô, ô, Aurora, e não é de choramingas e não-me-toques em relação a este assunto. [A morte é absoluta, a vida não; ele acha, eu, não]. Se o escritor Souza Reis morrer de morte matada – e ninguém está a salvo de ser assassinado por algum louco varrido, pelo vizinho do lado ou pela cavalgadura + próxima, diz o mesmo: também não quer choro nem vela.  

A bordo do viés literário que me é peculiar, especulo: talvez Souza Reis tenha motivos sim para ser assassinado por algum psicopata de plantão. Senão vejamos: 1. S.R. é homossexual assumido e há mais homofóbicos homicidas mundo afora do que apontam os institutos de pesquisa. 2. Define-se politicamente ateu e defende, com verve: políticos de A a Z são a escória da raça, e, neste tempo de extremistas radicais com sede de sangue, politicamente ateus podem se tornar alvos persecutórios de primeiro grau. 3. Tem tatuada no dorso da mão direita lua crescente + estrela, símbolo do mundo árabe, e, no dorso da mão esquerda, a estrela de Davi, símbolo do mundo judaico – e árabes e judeus exaltados e erráticos poderão se sentir ofendidos por essa postura pacifista desabrida e escancarada. 

[Souza Reis e eu somos amigos íntimos desde a faculdade – e posso atestar: é notável escritor, talvez melhor do que eu – digo-lhe sempre – e ele não me desmente;  apenas desabafa, magoado: ‘Mas isso não significa nada neste kafkiano mercado literário brasileiro regado a compadrios torpes.’]

Noite de sexta-feira, 23 de março de 2018. Conversamos em mesa de bar – ele é viciado em coca-zero; eu sou abstêmio. Estropiado e destroçado com recente golpe literário que lhe enfiaram no baixo ventre, sangrando, e imerso na penúria + absoluta, Souza Reis, num jato de inconformismo, desabafa – e eu anoto tudo, palavra por palavra. 

Souza Reis é explícito nas exigências post-morten, que procuro anotar com rapidez: 1. ‘Não quero que esse bando de fariseus que hoje me ignoram tirem proveito de minha morte morrida ou matada’. 2. ‘Quando morrer de morte morrida ou matada vomitarei sangue e merda no colo de todos os sacanas que publicarem homenagens póstumas e de magógicas nas redes sociais’. 3. ‘Se me assassinarem e tentarem fazer de mim herói e vítima desse tempo sombrio, eu retornarei para cortar a jugular desses salafrários e oportunistas de merda’. 4. ‘Ninguém me representa – nem você me representa! – nem partidos políticos, nem associações protetoras de minorias, nem qualquer espécie de associação protetora de animais’. 5. ‘Sendo contundente: desautorizo a cria ção de avatares com fotos minhas sublinhadas por frases mequetrefes tipo somos todos reis’. 6. ‘Não quero filho da puta nenhum usando o meu cadáver à guisa de turbante. Nem você! Fui claro?’ 

[Ao escritor argentino Ricardo Emilio Renzi Piglia, com profunda admiração, in memoriam].