Obra-prima da literatura, Grande Sertão: Veredas chega ao TCA

Espetáculo estrelado por Caio Blat fará duas apresentações em Salvador neste fim de semana

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  • Da Redação

Publicado em 18 de julho de 2018 às 05:40

- Atualizado há um ano

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Mire (e) veja. A expressão é quase um refrão de Grande Sertão: Veredas, obra-prima do escritor mineiro João Guimarães Rosa. É a partir dela que o leitor é convocado pelo jagunço Riobaldo a prestar atenção no que é narrado. Mire (e) veja. “É quase um refrão da vida. Não é fácil. Você tem que querer ver, tem que estar disponível para isso”, diz a diretora Bia Lessa, responsável pela adaptação do texto para o teatro. É com essa disposição que quem for assistir ao espetáculo deve chegar. Não só porque ele é longo - são duas horas e vinte de duração, sem intervalos -, mas sobretudo porque fruí-lo demanda esforço, assim como a vida. 

É exatamente por isso que não há pausas. “O livro termina com um sinal de infitito. O Grande Sertão: Veredas é um rio caudaloso, algo que não se pode brecar”, destaca Bia Lessa, que decidiu voltar à direção teatral com este trabalho.  Instalação No palco, dez atores dividem cena com bonecos de feltro (Foto: Annelize Tozetto) A última vez que ela tinha dirigido um espetáculo foi em 2009. Três anos antes, havia explorado a obra de Guimarães Rosa em uma exposição no Museu da Língua Portuguesa.“Eu defendia Guimarães no museu sem nem mesmo ter lido o livro, só com o conhecimento de que era uma obra fundadora. Depois dessa experiência e de ler o livro muitas vezes, acabei convidando a mim mesma a estar com ele mais tempo”, conta sobre a decisão de fazer a adaptação anos depois. Para Bia, montar Grande Sertão é enfrentar questões necessárias de se falar, que têm a ver com a construção de um novo ser humano, de uma outra humanidade.  Por isso, pouco importa se o espetáculo é longo, é curto. “O que interessa é o tempo que você quer se dedicar. Eu, Bia, quero me dedicar um ano a Guimarães, com todas as possibilidades e problemas que ele pode me dar? Eu quis!”, pondera. A obra acompanha a saga do jagunço Riobaldo (Caio Blat, e também Luisa Arraes), que atravessa o sertão para combater seu inimigo Hermógenes (José Maria Rodrigues), fazer um pacto com o diabo e viver seu amor por Diadorim (Luiza Lemmertz). Guerra, amor, dor, prazer, miséria, poder. Todos os grandes temas que perpassam a existência estão lá.Travessia  Há um mês, Grande Sertão: Veredas deu início à sua turnê pelo país e ganhou palcos maiores que o das temporadas de estreia em São Paulo e no Rio de Janeiro. Vencedor do Prêmio APCA 2017 na categoria Melhor Direção, do Prêmio Shell nas categorias Melhor Direção e Melhor Ator (Caio Blat) e do Prêmio Bravo! 2018 na categoria Melhor Espetáculo de Teatro, o espetáculo roda o país sem patrocínios.

Os desafios de bancar todos os custos e de fazer a peça chegar ao maior número de pessoas, muitas vezes em um único fim de semana, fez com que a produção se rendesse a palcos maiores. “Queria que muita gente visse, queria circular com esse espetáculo com ingressos a R$ 10, mas não foi possível. Por isso, quero agradecer à plateia, que é quem financia isso, que possibilita o espetáculo rodar”, comenta a diretora. Quem for assistir ao espetáculo no Teatro Castro Alves poderá ter duas experiências bem distintas, a depender do local que escolha sentar. Nenhuma delas, menor, garante a produção. Aqueles que sentarem nas filas tradicionais, terão uma dimensão da cena como um todo, verão quase que uma guerra coreografada. Já quem sentar na gaiola - uma estrutura de andaimes instalada no palco -, terá acesso a fones de ouvido, que permitem uma experiência sonora ainda mais intensa.  Gaiola Público acompanha atores de perto, em andaimes instalados no palco (Foto: Annelize Tozetto/ Divulgação) Aliás, a trilha sonora merece um parágrafo à parte. Ela completa a atmosfera, se estruturando em três camadas: os ruídos e sons ambientes, a música composta por Egberto Gismonti e a trilha sonora que representa a memória emotiva do brasileiro, com músicas que fazem parte do imaginário nacional. Além da escuta atenta, quem fica na gaiola é exigido a sentir cheiros, a se adaptar em uma arquibancada não tão confortável assim e a ver de perto cada uma das expressões e movimentos dos atores.   Estes, por sua vez, são exigidos ao máximo, tanto física, quanto emocionalmente. “Eu estou sempre no limite em cena. Durante os dois meses que ficamos em cartaz, foi como se eu fosse mesmo um jagunço na guerra. Ninguém vai para a batalha inteiro. Você entra em campo ferido, faminto, e tem clara a noção de que depende do grupo para sua sobrevivência”, lembra Caio Blat, que dá vida ao narrador-personagem. Experiência disruptiva  Ao lado dele, outros nove atores dão vida ao sertão, que pode ser o mineiro, o baiano, o de qualquer lugar do mundo. Eles interpretam personagens, mas também bichos, cactos e pedras. Tudo a partir das emoções que o texto com suas muitas palavras inventadas despertava em cada um deles e no grupo. Os ensaios, inclusive, começaram antes mesmo de os atores terem decorado as falas.  A aposta ousada da diretora é reflexo de como ela enxerga a obra de Guimarães. “É o primeiro autor que, de fato, pensa na ecologia de forma contemporânea”, observa. Com os bichos, plantas e demais elementos da natureza tendo a mesma importância de Riobaldo, fica claro o peso de cada um dos atores na construção dessa cena orgânica.  Trilha sonora Ruídos, sons e música formam três camadas musicais e dão força à peça (Foto: Annelize Tozetto/ Divulgação) Por tudo isso, foi tão difícil preparar um grupo coeso e disposto a enfrentar tantas intempéries no palco - e fora dele. “Me interessava criar um elenco muito heterogêneo, com gente vinda de lugares muito diferntes, com trajetórias distintas, para criar um gupo com atritos, e não com congruências”, destaca Bia, ao lembrar que muitos atores acabaram não dando conta de responder à rotina extenuante de mais de nove horas de ensaio. “É uma entrega física, intelectual, psíquica. É preciso estar nu no palco e dar conta de viver fora dele a reverberação de tudo que o texto provoca”, continua. Um dos primeiros a receber o convite da diretora, Caio Blat entendeu de cara que aquele seria o trabalho da sua vida. “O texto é deslumbrante, revela o Brasil e o que há de mais profundo no ser humano. É uma obra que parece ter dito tudo, então é um privilégio fazer um personagem tão completo”, conta o ator. A atriz Luiza Lemmertz, por sua vez, foi a última a ser escalada no elenco. Com a missão de viver Diadorim, o grande amor da vida de Riobaldo, ela chegou um mês antes da estreia do espetáculo. “Foi o mês mais louco da minha vida. Meu filho estava com oito meses, eu amamentava ainda”, recorda, ao destacar o quanto foi importante  o apoio da família e do grupo. Durante esse mês, o livro foi sua “bíblia”. “Eu só lia e pensava em como fazer um personagem tão mítico, no texto ele aparece como que apartado do mundo”, diz ela, que foi escolhida também por suas feições andróginas.

 “Ler o livro já é uma travessia. Se você consegue completá-la, já é uma transformação. Você sai modificado por ele. Pra mim, foi muito assim. E a Bia, com toda genialidade dela, fez isso com a peça também”, afirma.