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Da Redação
Publicado em 11 de novembro de 2019 às 05:00
- Atualizado há um ano
Desde o século passado, sobretudo na segunda metade, quebramos a caixa do autoritarismo e da repressão corporal e mental. Em vários aspectos, arrombamos uma porta muito estreita e passamos a gritar por mais liberdade. Livre para casar, escolher um emprego, divorciar, namorar, estudar, votar, ter ou não uma religião, não engravidar, escolher uma estética agradável aos nossos olhos. É um processo de autoprodução de escolhas e, em alguma medida, de autodefinição da vida, proporcionando um sentido particular do eu. Em outras palavras, aumentamos a margem de escolhas. Dizer se isso é uma regra ou exceção vai depender muito do contexto e lugar; mas não podemos negar que num Estado democrático - no qual as demandas e reivindicações são infindáveis - e um modus operandi liberal, como estilo de vida, há uma tendência à regra (ou seja, mais liberdade).
O privilégio de uma sociedade mais permissível, numa era de pós-libertação de amarras tradicionais e seculares, que possibilitou maior arbítrio do sujeito, optou pela crença na responsabilidade individual. Martelamos as morais, repressões, autoritarismos, tradicionalismos, valores milenares e religiosos, enquadramentos normativos que direcionavam nossas condutas, objetivando e fabricando nossas subjetividades. Desnudamos imperativos tidos como verdades absolutas, que foram acusadas de simples discursos hegemônicos pautados em poderes hegemônicos. Não à toa, não aceitamos mais retrocessos. Um retorno ao passado beira a uma distopia delirante. Vejam a série The Handmaid's Tale.
No entanto, ao mesmo tempo a abundância de escolha, ou a quantidade de opções disponíveis, gerou o seu duplo, o lado obscuro, a outra face: angústia, depressão, ansiedade, medo, individualismo exacerbado, carência, fragilidade, autocobrança em excesso, sofrimento emocional e psíquico. A priori, não criamos sujeitos adequados a uma nova ética, uma nova sociedade que demanda autorresponsabilidade, autonomia, autorreferência, autoestima, dotados de um espírito de auto empreendedorismo, capazes de guiarem-se por si mesmos sobre questões econômicas, políticas, sociais e existenciais.
Para preencher o vazio da incapacidade construtiva a uma pedagogia de si mesmo, ou a formação de uma subjetividade mais autêntica, apelamos a consumos desenfreados como se fossem remédios capazes de abrandar a angústia e o sofrimento de encararmos a nós mesmos; evitamos ser nossos próprios artesãos, rejeitando uma vida sadia, sóbria, centrada. Incapazes de viver a solitude abraçamos a solidão. Somos solitários em meio a uma multidão desorientada e desolada!
Esticamos a corda e agora não sabemos onde vamos parar! Ao estabelecer quebras de paradigmas - padrões vigentes sobre códigos de conduta sexual, familiar, gênero, racial, educacional, estética, religiosa, saúde - criamos também uma compulsão egoísta, numa busca incessante, desenfreada e voraz por autoidentidade, autoafirmação, autorreconhecimento, que, gostemos ou não, desencadeou uma fragilidade individual e social não desprezível. Pois, quanto maior a exigência por autorreferência, numa sociedade mais liberalizante, que ordena perfeição, infalibilidade, competição permanente e construção particular de sentido e identidade, mais onerosa ou custosa é o desenvolvimento de um tecido coletivo, de uma com–vivência, viver junto.
É muito mais fácil organizar uma sociedade no qual as pessoas são guiadas por terceiros, ditada por escolhas a priori, do que regida por elas mesmas, porquanto estas são mais imprevisíveis. Como diria o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, vivemos num mundo onde a liquidez virou referência. Quanto maior o estímulo à autocondução existencial e social, menor as conexões duradouras mais convergentes que possibilitaria uma com-vivência menos fragmentada.
Por isso, muitos tendem a exaltar o passado, a nostalgia de um tempo em que havia poucas alternativas e conflitos, maior controle sobre os corpos, maior homogeneidade, menor insegurança psíquica e social. Mas, será, nobre leitor, que vale a pena viver numa sociedade em que a repressão é maior do que a liberdade de decidir por si mesmo? É possível encontrar algum equilíbrio? O que acham?
Alan Rangel é doutor em Ciências Sociais/ UFBA. e professor da Faculdade Fundação Visconde de Cairu.
Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores