Ousman Umar: o escritor que desafiou a morte

Convidado da Festa Literária VivaLivro, ex-refugiado ganês conta como mudou o próprio destino

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  • Laura Fernades

Publicado em 24 de março de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

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O destino do escritor ganês Ousman Umar era morrer. Escapou mais de uma vez desta sina, antes de virar empreendedor social com palestras mundo afora. A primeira foi ainda bebê, quando quase foi sacrificado depois de sua mãe morrer no parto. Seu pai, líder da tribo em que vivia, contrariou a tradição e conseguiu salvá-lo. Aos 9 anos, saiu do povoado de Gana onde as crianças caminhavam 14km para estudar.

Aos 13, enfrentou o deserto do Saara em um grupo de 46 pessoas. Apenas seis chegaram vivas na Líbia. Ousman fugiu pelo mar em direção “ao país dos brancos” e viu um dos barcos afundar com 200 pessoas, incluindo amigos. É essa história de dor e superação que o escritor compartilha na mesa de abertura da Festa Literária Internacional VivaLivro, nesta quarta-feira (24), a partir das 16h.

O evento online e gratuito realizado pela editora Solisluna segue até sábado (27) com nomes como Ailton Krenak, Neide Almeida e Goya Lopes. Na abertura “Infâncias e Leituras sem Fronteiras”, Ousman, que hoje mora na Espanha, resgata sua trajetória que começou no povoado africano de casas de barro e sem energia elétrica, onde dois rios abasteciam a região: um para beber água, o outro para lavar-se.

“Em grande parte, as inúmeras dificuldades que enfrentei foram devidas à falta de formação que tinha naquela época, e por isso, assim que cheguei à Europa, quando tive acesso a livros e informações, não conseguia parar de ler. Acredito que a leitura alimenta a alma e nos faz crescer. Isso é igual ou mais importante do que alimentar o corpo”, diz Ousman em entrevista exclusiva no Brasil, ao CORREIO.

Autor do livro Viaje al País de los Blancos (Viagem ao País dos Brancos), lançado em abril de 2019, Ousman fundou a Nasco Feeding Minds em 2012, uma ONG com sede em Gana e Barcelona que fornece equipamentos e educação em Gana. Seu objetivo é “salvar a vida de milhares de pessoas que merecem acesso a oportunidades e informações antes de correr riscos nesta jornada”. Confira. Escritor ganês, Ousman Umar participa da mesa de abertura da VivaLivro (Foto: Sergi Alcazar/Divulgação) Sua história é impressionante. Diante das inúmeras dificuldades que enfrentou, como a leitura conquistou espaço em sua vida? Muito obrigado, a verdade é que em grande parte, as inúmeras dificuldades que enfrentei foram devidas à falta de formação que tinha naquela época, e por isso, assim que cheguei à Europa, quando tive acesso a livros e informações, não conseguia parar de ler. Acredito que a leitura alimenta a alma e nos faz crescer, nos informa e faz refletir. Isso é igual ou mais importante do que alimentar o corpo.

A Festa Literária Internacional VivaLivro tem como tema ‘Literatura como Acolhimento’. Você concorda que a literatura é acolhimento? Por quê? Sem dúvida. A literatura acolhe a todos que estão dispostos a lê-la com a mente e o coração abertos. A literatura não tem limites, nem exige nada de ninguém, nem tem preconceitos... Ela simplesmente está ali, para que qualquer um que queira aproximar-se.

Como será sua participação neste evento? O que vai compartilhar com o público? Vou partilhar a minha história pessoal, uma história que tomou forma no livro Viagem ao País dos Brancos, onde relato a viagem que milhares de pessoas fazem todos os dias da África à Europa, em busca de uma terra prometida que não existe. Falo com a boca de todos aqueles que não chegaram com vida para contá-lo, e com a intenção também de que um dia ninguém percorra esse caminho infernal

Por que a leitura é tão poderosa? Porque transforma nossa maneira de ver a realidade; a amplia e preenche com a verdade. A ignorância é a arma letal que mata mais pessoas e, por outro lado, a formação é o salva-vidas que ajuda a tomar as melhores decisões na vida.

Em sua opinião, por que ainda há resistência por parte do poder público em investir em educação? O que a sociedade pode fazer para mudar essa realidade? Muitos governos não têm interesse em promover o conhecimento e a educação, por puro interesse político... Já que o pensamento crítico e fundamentado é perigoso para uma pessoa que tem poder e deseja dominar uma massa. Por isso devemos nos esforçar para regar as plantas menores (educar as crianças), para que elas mesmas percebam e mudem aos poucos essa realidade, com pequenos passos que um dia farão grandes diferenças.

Você esteve face a face com a morte mais de uma vez. O que te fez não perder a esperança? A verdade é que a esperança é o que me mantém vivo o tempo todo. Não podia me permitir olhar para trás, só pensava em continuar, em dar mais um passo à frente... Foi assim que cheguei. E ainda tenho dificuldade em acreditar.

Como é viver como negro no “país dos brancos”? No começo é muito difícil, principalmente se você chega e não conhece ninguém. Então você fica invisível. Aos poucos fui me integrando e agora me sinto quase mais catalão do que africano, mas é um processo muito longo que no meu caso já dura mais de 10 anos.