'Oxe, achei que fosse o trio': a curiosa história do símbolo do Carnaval

A trajetória da invenção elétrica de Dodô e Osmar contada no ano que não a viu passar

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  • Laura Fernades

Publicado em 29 de março de 2021 às 10:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Acervo Família Macêdo

“Meu pai inventou o trio elétrico!”, dizia Armandinho Macêdo, ainda criança, “mas pouca gente acreditava”, ri, hoje com 67 anos, o mestre da guitarra baiana que é filho de Osmar Macêdo (1920-1997). Junto com Dodô (1920-1978), Osmar criou há 71 anos o trio elétrico, a famosa Fobica, símbolo do Carnaval.

Na pandemia, o trio não saiu de casa. Ao mesmo tempo, artistas inventaram novos espaços para ressignificar esse palco que é a cara da folia: Daniela Mercury cantou em uma “caixa mágica”, o Navio Pirata do BaianaSystem virou digital e navegou da África para a América Latina e o trio de Bell Marques se transformou no Forte de São Marcelo. 

“O trio esse ano não dançou, não cantou, não tocou e isso me abalou muito mais do que eu poderia imaginar. Senti um imenso vazio”, confessa Daniela Mercury sobre o responsável por exportar a axé music para o mundo. O trio elétrico “é a essência e a identidade do Carnaval da Bahia”, defende a cantora que levou uma miniatura do caminhão sonoro para o cenário feito por J. Cunha, em sua live de Carnaval. 

“Mais do que nunca, tivemos que virar crianças para nos imaginar atrás do trio ou sobre ele”, sorri. Sem o trio, “não há Carnaval de rua com tanta energia e aquela aglomeração que todo mundo gosta”, defende Daniela. Afinal, “o trio é um extraordinário anfiteatro de arena sobre rodas, um andarilho encantado, uma caixinha de música poderosa”. “Foi um Carnaval novo. Sem trio, mas com a música que ele inspirou e inspira”, pondera. O grupo BaianaSystem lançou o álbum Navio Pirata na sexta-feira de Carnaval (Ilustração: Cristiano Rafael (Criss)/Divulgação) Lá vem o trio! O trio pode não ter ido para a rua neste Carnaval, mas de casa Armandinho reviveu memórias do caminhão que amplificou o som do cavaquinho elétrico e substituiu as bandas de rua, a partir de 1950. Primeira voz do trio, antes de Moraes Moreira (1947-2020) assumir o posto, o cavaquinho que ganhou o nome de guitarra baiana era sua marca. Bastava soar os primeiros acordes para a vizinhança gritar: “Lá vem o trio!”. 

Por causa disso, Armandinho cansou de pregar peças nos vizinhos de Itapagipe, onde foi criado com os Irmãos Macêdo – Aroldo, André e Betinho. Ainda criança, o músico que fez do cavaquinho elétrico (ou pau elétrico) a sua guitarra, inspirado em astros do rock, ligava o amplificador na porta de casa e começava a tocar. Minutos depois, a rua estava cheia de gente dizendo: “Oxe, achei que fosse o trio elétrico”. 

Osmar amplificou o som no caminhão para poder tocar frevos carnavalescos com sua banda formada por três músicos, o Trio Elétrico. Armandinho, com apenas 10 anos, já tinha aprendido todo o repertório do pai e acabou ganhando um trio mirim. “A gente brinca de trio elétrico desde pequeno, em casa, imitando meu pai. É uma paixão que vem de berço”, diz, orgulhoso do pioneirismo de Osmar.

O carrinho amplificado virou uma caminhonete, depois um caminhão e quando os Irmãos Macêdo assumiram o legado de Dodô e Osmar colocaram na rua uma verdadeira banda, com direito a bateria, contrabaixo e guitarra. “Eu não queria uma charanga de Carnaval, queria uma banda ali em cima”, justifica Armandinho que, com os irmãos, forma a banda Armandinho, Dodô e Osmar. 

“Ele queria mostrar para o mundo os dois criadores do trio elétrico, porque ninguém conhecia”, lembra o guitarrista e irmão Aroldo Macêdo. “Quando a gente botou nosso trio elétrico na rua, em 1974, foi um grande momento com certeza”, diz Armandinho. Um ano depois, em 1975, após gravar duas músicas no disco instrumental Jubileu de Prata que Moraes passou a cantar no trio.  

A partir dos anos 80, cantores da axé music roubaram a cena. “O trio se tornou parte da minha expressão artística”, enaltece Daniela, que em 1982 cantou em um caminhão ainda “pequeno com som mambembe”. “O Axé foi concebido e desenvolvido no trio, é um gênero que se criou a partir desse palco extraordinário que eu amo e que traz infinitas possibilidades”, agradece a estrela que em 2022 completa 40 carnavais. Em 1964, Osmar Macêdo construiu um minitrio para seu filho Armandinho tocar no Carnaval (Foto: Acervo pessoal família Macêdo) Sem trio, sem Carnaval Na opinião de Armandinho, não existe Carnaval em Salvador, hoje, sem o trio elétrico, porque “ele virou a razão de ser” da festa. O palco que acompanha toda uma tecnologia de luz e som “faz jus a todo o desenvolvimento do showbusiness no mundo”, justifica o guitarrista. Mas nem é preciso uma estrutura tão grande para arrastar uma multidão, como mostra o Navio Pirata do BaianaSystem. 

Pequeno – e criticado por causa disso no Furdunço de 2020, o trio do Baiana mostra sua potência em Salvador e em São Paulo onde a cada Carnaval aumenta o número de foliões. A multidão ficou tão grande que o som não consegue mais acompanhar a dimensão que tomou a pipoca mais cobiçada da folia, hoje. Para o público, já não dá para escutar bem o grupo durante o percurso. 

Mas o Baiana avisa que não pretende aumentar o tamanho do Navio. Quer mesmo é manter o contato íntimo com os foliões. “Os trios elétricos, de alguma forma, causaram essa sensação de claustrofobia, tomada de espaço, da opressão do som em volume alto”, justifica o guitarrista do grupo, Roberto Barreto, ao lembrar da disputa sonora entre trios que é comum de se ver na fila da Avenida. 

O Carnaval, reflete Beto, “é uma festa popular” antes de tudo. Por isso, para o grupo não existe festa sem o Navio Pirata e seu mar de gente. “Claro que existia Carnaval sem trio elétrico, com batucada, com música cantada pura, mas o trio transforma essa experiência, a forma de produzir a festa”, destaca. E é essa manifestação ao vivo que faz a festa acontecer, reforça o cantor Russo Passapusso. 

“Sem ela, serão apenas outras formas adaptadas de fazer algo na época do Carnaval”, explica o vocalista do grupo que esse ano lançou o primeiro ato do disco OxeAxeExu com o nome de Navio Pirata, em plena sexta-feira de Carnaval. “A gente não quer que a manifestação perca força com essas adaptações. Aquilo é o encontro dos populares na rua, vivendo, dançando, cantando e celebrando a vida”, defende. Em 1950, Dodô e Osmar criam o trio elétrico em cima de um Ford Bigode 1929, conhecido como Fobica. O objetivo era amplificar o som do cavaquinho elétrico (pau elétrico) de Osmar e do violão elétrico de Dodô  (Foto: acervo pessoal familia Macêdo) Chame gente  O trio criado por Dodô e Osmar transformou de maneira tão significativa a cultura do Carnaval que desde que foi criado nunca mais ficou de fora da festa. Só no ano de 1982 não esteve presente na folia de Salvador, mas porque foi parar no Carnaval de Itabuna. E inspirados na Fobica, outros trios elétricos de diferentes tamanhos e potências ganharam o Brasil e o mundo. 

“O trio elétrico já passou a fazer parte de outros carnavais e vem sendo o veículo. Ele mudou todo um comportamento. O Carnaval da Bahia, de Salvador, é diferente em função do trio, que é seu grande palco”, orgulha-se Armandinho. A Praça Castro Alves, com seu encontro de trios, foi palco “das melhores coisas do Carnaval, coisas inesquecíveis”, garante. 

O ano de 2021 foi o primeiro da história que não viu o trio chamando gente na praça do poeta. Então, para matar a saudade, Armandinho e os irmãos estão planejando um Carnaval junino. “A gente tem uma ligação muito boa da guitarra baiana com a sanfona”, justifica o guitarrista do grupo que já gravou forró com nomes como Luiz Gonzaga (1912-1989), Sivuca (1930-2006) e Oswaldinho do Acordeon. 

Claro que a farra só acontecerá se a pandemia permitir. Mas a pé ou de caminhão não pode faltar a fé, como diz um dos clássicos do repertório da banda Armandinho, Dodô e Osmar. E o mestre da guitarra baiana manda seu recado: “Que a gente consiga se restabelecer nesse que é nosso palco, nossa história e o que a gente sabe fazer melhor”.

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