Palco da vitória: lugares em Salvador guardam memórias de lutas de baianos contra portugueses

Bairros na capital ainda têm atmosfera histórica da Independência da Bahia

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  • Saulo Miguez

Publicado em 2 de julho de 2017 às 07:11

- Atualizado há um ano

Quando até o sol nasceu brasileiro, a História se fez presente em cada pedaço da Bahia. Era 2 de julho de 1823, e as tropas brasileiras confirmavam vitória sobre Portugal. Naquele dia, as ruas de Salvador deram espaço para todo mundo: índios, negros, caboclos, escravos e libertos. Hoje, percorrer esses caminhos é mergulhar no fabuloso enredo escrito por heróis do povo e que ganha novos capítulos a cada raiar do dia.

A vida segue normalmente onde há 194 anos se encerrava a batalha que resultou na independência da Bahia. O bairro de Pirajá abriga a Igreja de São Bartolomeu, construída em 1608, e o Panteão de Pirajá, onde estão guardados os restos mortais do general francês Pedro Labatut, líder das tropas brasileiras e que hoje nomeia a praça onde estão as edificações.

Apesar das mudanças decorrentes do tempo, o local preserva uma atmosfera histórica que se torna mais brilhante com a aproximação da chegada do fogo simbólico. Em meio aos ruídos provocados pelos trabalhadores que preparam a igreja para celebrar a data, a pároca Luiza Maria da Silva, 81 anos, faz em silêncio a sua prece.

Com o olhar fixo no altar, dona Luiza é generosa na oração: “Peço para todos nós saúde e felicidade”. Há 40 anos, ela se dedica a cuidar da igreja e três vezes por semana vai às missas. “Desde que vim de Pernambuco, estou nesta igreja, moro em Pirajá e sou muito satisfeita por isso”, diz.

Sobre o 2 de Julho, dona Luiza lembra que a festa está cada dia maior. “Hoje tem muita gente, antigamente não era assim.” A auxiliar administrativa da igreja, Alba Regina Querino da Silva, 56, completa dizendo que o lado cívico da data hoje disputa espaço com o social: “Antes se lembrava muito a batalha, os colégios se envolviam mais, agora é uma festa”.

SímbolosUm canhão apontado para a parede. Essa é uma das curiosidades do Panteão da Lapinha, ou a Casa do Caboclo, construída em 1924, no Largo da Lapinha, para abrigar as carruagens que levam o Caboclo e a Cabocla, símbolos populares da independência, durante o desfile.

“Eu tenho a impressão que aquele canhão é um troféu de guerra remanescente de uma das batalhas, talvez a de Pirajá, que foi colocado ali como lembrança”, conta o restaurador José Argolo, que há 20 anos cumpre o que ele chama de dever cívico.

O trabalho de Argolo trouxe à luz os verdadeiros traços da independência. Quando foi convidado para restaurar as imagens, encontrou sobre a obra uma grossa camada de tinta que encobria mais do que a tonalidade original das peças modeladas na primeira metade do século XIX. “Pareciam monstrengos porque quem cuidava das esculturas aplicava tinta sobre tinta. Raspei 50 camadas de pintura e os olhos de vidro estavam sob um centímetro de tinta. Foi como revelar a história”, relembra.

De olhos abertos, os caboclos parecem ver a devoção que o povo nutre por eles e é testemunhada pelo restaurador. “O baiano tem fé nas imagens como se fossem orixás. Enquanto estão na casa, as pessoas pedem para se aproximar, fazem pedidos, rezam de joelhos. Já recolhi bilhetes de pessoas que alcançaram graças e atribuem-nas a essas figuras.”

No entorno da casa, outras referências remetem ao 2 de Julho. Na entrada do largo, um busto do general Labatut dá as boas-vindas àqueles que querem conhecer a nossa história. Nada, no entanto, é tão capaz de nos transportar aos capítulos do passado quanto ouvir as vivências daqueles que viram a história se fazer.

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ResistênciaO aposentado Prim Lemos Machado, 78, lembra o tempo em que as pessoas saíam de casa para ver as escolas se apresentarem no festejo. “Antigamente, havia um concurso que elegia a melhor banda dos colégios; hoje, infelizmente, não temos isso. Apesar de tudo, a história continua”, conta o aposentado.

A dona de casa Iara Maia, 59, passeia com a neta Iasmin, 1 ano e quatro meses. O tom nostálgico paira sobre o olhar e atinge as palavras de dona Iara quando ela compara a festa de 30 anos atrás, com a de hoje. “Eu espero que a minha neta, quando estiver adulta, encontre um 2 de Julho do jeito que eu achei quando me mudei para cá”, espera ela.

“Para trás, bárbaros. Aqui é a casa de Deus e só entrareis por cima do meu cadáver.” A abadessa Joana Angélica proferiu a frase que virou símbolo da resistência contra os abusos lusitanos.

O fato ocorreu na noite do dia 20 de fevereiro de 1822, no Convento da Lapa, e inflamou ainda mais o desejo de libertação. Os portugueses saíram por Salvador em verdadeira caçada aos insurgentes brasileiros e invadiram o convento por acreditarem que as freiras estavam escondendo rebeldes.

O médico e voluntário da Paróquia de São Pedro, Getúlio Tanajura Machado, conta que ainda hoje, no local onde a madre morreu, se sente algo difícil de explicar. “No altar da Igreja da Lapa, você sente uma paz interior muito grande.”

Para além dos registros históricos, o folclore também permeia o martírio da abadessa. “Nunca foi comprovado, mas dizem que, com a invasão, as freiras fugiram pelo quintal do Convento da Lapa que teria uma ligação com o Convento do Desterro”, conta Machado.

O folclore traz ainda a aparição do arcanjo São Miguel, que, com um raio de luz, teria impedido os soldados de chegarem até as freiras.

Mártir da independência, Joana Angélica ainda inspira a luta feminina. O crucifixo que ela segurava quando foi morta está exposto no Instituto Feminino da Bahia.

Perto dali, no Campo Grande, está o Monumento ao 2 de Julho, inaugurado em 1895 e que traz como destaque um caboclo de mais de quatro metros de altura, matando um dragão que representa a tirania portuguesa. Esculpida na Itália, a obra conta a história em metal, mármore e alegorias. “O monumento é rico em detalhes, tem relatos das principais batalhas e nomes de pessoas que morreram”, explica o historiador Milton Moura.

O ocupante da praça também não está livre dos problemas com a vizinhança. Quando recebe os irmãos da Lapinha, após o desfile, não é incomum vizinhos implicarem com os presentes deixados aos pés dos heróis. “Isso decorre da dificuldade que as pessoas têm de se reconhecerem como híbridas, plurais”, diz Moura.