'Para as pessoas, você deixa de ser mãe', diz psicóloga após morte do filho

Verena perdeu o filho de dois anos e cinco meses

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  • Thais Borges

Publicado em 13 de maio de 2018 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Betto Jr./CORREIO

"Eu não imaginava minha vida longe do meu filho, mas eu tive o meu tempo", diz a psicóloga Verena Cohim, 36 anos. Há sete anos e meio, ela perdeu o filho de dois anos e cinco meses - ele teria feito 10 anos na quinta-feira (10).  Neste domingo (13), o CORREIO conta a história de mulheres que não costumam aparecer em reportagens desta data. Verena é uma dessas mães. Hoje, ela ajuda outras mulheres que perderam seus filhos. 

Confira o depoimento dela na íntegra

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"Eu tenho um filho, uma filha de um ano e dois filhos caninos. Meu filho estaria completando dez anos agora no dia 10. Tem sete anos e meio que ele faleceu, quando tinha dois anos e cinco meses. 

Nossa relação era muito forte, ele era muito grudado comigo. Muito carinhoso, uma relação muito intensa. A espiritualidade acredita que a gente sabe as coisas que vai passar aqui. Era como se a gente soubesse que a gente ia passar pouco tempo junto. Desde que ele nasceu, eu falava que o amava do tamanho do mundo inteiro e abria os braços e ele abria os braços também. Era uma relação de outras comunicações não-verbais de abraçar muito, beijar muito. (Na época) Eu já tinha um cachorro e ele era apaixonado por esse cachorro. Ele era muito intenso com tudo. 

Meu filho se afogou na piscina na chácara da minha família em Feira (de Santana, no Centro-Norte do estado). Era o feriado do Dia de Finados e ele se afogou. No primeiro momento, você fica fora de si. Eu fiquei surtada porque ele não estava doente. Quando tem um processo de doença, você pensa na possibilidade. Como foi um acidente, foi algo inatingível para mim. 

Ele era o único neto do lado da minha família, único filho, então foi muito difícil. É desesperador. Você se desconecta da realidade hoje e passa para outra dimensão. Não tem nome para essa dor. É uma dor imensurável, mas foi ele mesmo que foi me acalmando. Tive alguns sonhos com ele, que me apresentou o espiritismo, que eu não conhecia. Foi através da fé que eu realmente fui encontrando um acalento, força e identificando que outras mães já tinham passado por isso.  Na escolinha do meu filho, recebi uma carta de uma mãe que também já tinha perdido. Você se sente sozinha naquele momento, acha que só aconteceu com você, que mais ninguém do mundo perdeu. Até que você começa a saber histórias da mesma situação, inclusive afogamento. Eu sou psicóloga, então já vinha de um processo de terapia há muitos anos. E isso me fortalece muito, eu já tenho conhecimento da profissão, fiquei cinco anos trabalhando na UTI do Hospital Português, onde lidei com a morte. Foi como se Deus tivesse me dado instrumentos na minha vida para eu conseguir usar nesse momento. Teve um período que busquei um psiquiatra porque estava muito difícil, mas depois não foi necessário mais acompanhamento. Mas fui buscado ajuda, respeitando o meu tempo. 

As pessoas falam várias coisas tipo ‘se mude do meu apartamento’. Mas foi uma escolha minha não me mudar. Mesmo assim, doei tudo dele. Em uma semana eu já não tinha mais nada. Fiz questão de doar no GAC (Grupo de Apoio à Criança Com Câncer) berço, bicicleta, os brinquedos que ele mais gostava. Fui tentando me fortalecer. Comecei a ajudar outras mães. Perto da minha família, outras mães perderam filhos logo depois que eu perdi e fiz questão de ajudar essas mães. Hoje eu atendo mães que perderam seus filhos. Essa troca de poder ajudar outras pessoas que passaram por isso me faz bem. As pessoas não querem falar. As pessoas têm dificuldade de falar sobre a morte de filhos.  *** No Dia das Mães todo mundo esquece (das mães que perderam filhos). Lógico que você não vai desejar feliz Dia das Mães para quem não tem mais um filho, mas só meu pai lembrava de mim no Dia das Mães. Teve um ano que ele me deu uma santa, a Nossa Senhora Desatadora dos Nós. Isso foi muito forte para mim, de meu pai sempre lembrar que ainda era o meu dia. 

Mas, fora ele, ninguém lembrava que eu continuava sendo mãe. Depois que eu passei a ter minha filha, o Dia das Mães passa a ter um significado. Hoje eu tenho outros motivos para buscar força e alegria. Não é fácil, mas é possível. Quando a gente busca, a gente encontra essa força. 

Normalmente, as pessoas preferem não tocar nesse assunto, mas é extremamente importante. Há mães angustiadas agora e há outras que infelizmente ainda vão passar por isso. 

É como se meu filho não existisse mais para as pessoas. Se vou preencher um cadastro e comento que meu filho é falecido, a pessoa fala 'então, você só tem um filho', mas eu tenho dois. Antes da minha filha, eu falava q eu tinha um filho mas ele tinha falecido e as pessoas falavam 'então, você não tem filho'. As pessoas tentam te dar um lugar como se não existisse aquela mãe. Quando a gente perde nossos pais, a gente se torna órfã, mas não se deixou de ter pais. Ser mãe é um lugar que é nosso independente de qualquer coisa. E a gente tem que aprender a lidar com o nosso lugar, que é único, intocável, inabalável. *** Eu usava um pingentinho de menininho desde que engravidei mas tive que tirar. As pessoas perguntavam, eu respondia: ‘tenho um filho, mas ele faleceu’. E as pessoas começavam a chorar. As pessoas não conseguem falar sobre o assunto. E, muitas vezes, elas falam para você:  não chore, se acalme, o tempo cura tudo. Mas você precisa chorar, precisa se isolar. Teve momento que eu não quis sair, que chorei, não quis tomar um banho. Mas era o meu momento e fui buscando ajuda. 

E fui ajudando minha família, porque até meu cachorro deprimiu. Eu ainda tinha um filho para cuidar que era o cachorro. Quem perde um filho e tem um filho – humano ou não – você se toca que não é só de você que precisa cuidar porque a vida, mesmo com a dor, continua. Ou você aumenta aquele sofrimento ou você aprende a cuidar desse sofrimento. 

Para as pessoas, para o senso comum, você deixa de ser mãe. Mas eu não deixei de ser mãe. E o cachorro é meu primogênito, depois vem ele. Eu sou mãe dele ainda. Meu cachorro foi importantíssimo ali nesse processo. Ele estava 24 horas nesse processo, enxugando minhas lágrimas. 

Isso foi fundamental para mim. Ver que eu precisava continuar o amando, porque ele mesmo com a dor dele, ele também estava cuidando de mim. E era ele quem mais respeitava o meu momento, porque as pessoas sempre falavam isso ou aquilo. 

Eu não faço questão de ir no cemitério até hoje. Continuei morando no mesmo apartamento até engravidar de novo. Só aí que eu me mudei porque não me senti confortável para fazer o quarto no mesmo lugar. Eu achava que precisava ter o meu momento com minha filha. Então, achei que esse era o momento de sair. 

Mas, antes, eu só tirei o quarto dele, porque fiz um quarto de TV. Deixei umas lembrancinhas dele e eu criei um novo espaço que me fazia bem. Não era uma coisa que fazia mal. Conheço pessoas que perderam o filho há seis anos e continuam com o quarto do filho. A gente tem que enxergar a realidade de frente, mas buscar instrumentos que nos fortaleçam”. 

Eu não posso transferir para minha filha o que eu já vivi. Eu não pensava mais em ter filhos, não era nada que eu pensava logo. Ao contrário, tinha uma cobrança geral de que eu tivesse filho e eu não sentia esse desejo porque sabia que não ia substituir minha relação com ele. Minha relação com ele é única. Não era ter outro filho que ia substituir. Às vezes pode se tornar um problema a mais, porque cada relação tem o seu espaço. Lógico que a minha filha hoje traz um colorido para minha vida, porque depois que Gugu faleceu, minha vida passou a ser preta e branca. Mas não foi planejado (engravidar novamente) e eu não idealizei que nenhum filho ia substituir essa falta, porque a falta do meu filho é eterna. Eu tenho fotos dele até hoje. Eu, meu pai e minha irmã fizemos uma tatuagem para ele. Eu nunca me imaginei fazendo uma tatuagem, mas foi uma forma de a gente homenageá-lo. Então eu falo dele para minha filha desde sempre. Eu o incluo ele na vida dela.  Verena fez uma tatuagem em homenagem ao filho (Foto: Betto Jr./CORREIO) Ela vai aprender a ter amor por ele porque é o irmão dela, mesmo que não tenha convivido. Tem coisas que eu guardei dele que eu uso, tipo um roupão que guardei. Tem coisas pontuais que eu uso nela e eu falo ‘foi do seu irmão’. 

Como eu falo sem problema, acho que vai ser mais fácil ela absorver. Digo que ela tem um irmão que não está mais aqui, que está no céu, tudo dentro da possibilidade de entendimento dela. Eu lido isso de uma forma natural. Nunca tive problema de falar, nunca tive. Isso é um processo que me ajuda. A elaboração que eu tenho hoje é porque sempre falei sobre isso. 

Lógico que tinha momentos que eu chorava, mas até quando eu não queria falar, eu falava. Nunca evitei tocar no assunto e as pessoas mais próximas de mim sabem disso. Isso foi uma coisa que me marcou muito. As pessoas esperavam que eu tivesse deprimida, acabada. 

Eu segui minha vida. Ela perdeu as cores, mas eu continuei seguindo minha vida. Continuei dentro das minhas condições emocionais e sofri muito julgamento, porque as pessoas esperam que sua vida acabe junto. Tem um pouco dessa sensação.

*** O enterro dele foi uma coisa que me marcou muito porque a morte de uma criança comove as pessoas. Eu não avisei a ninguém mas tinha umas 200, 300 pessoas lá. O falecimento de uma criança mobiliza muito porque ninguém se imagina vivendo aquela dor. 

Até hoje, eu só busco lembrar as memorias boas do meu filho. O que me marcou do enterro foi isso: muita gente e muitas flores, mas eu sempre alimentei as lembranças de amor. Eu lembro dele sorrindo. Isso já era algo meu, mas o espiritismo reforçou o que eu tinha de crença: que eu deveria lembra dele com alegria, amor e que as coisas não acontecem por acaso. Eu encontrei através da fé um reforço para as minhas crenças e aquilo me fortalece. 

Enquanto as pessoas estavam me julgando, o espiritismo e a fé me falavam que a vida precisa continuar. Você precisa aprender a lidar com a dor, porque os grandes processos evolutivos são através do amor e da dor, mas nem todo mundo respeita isso. E eu odiava quando as pessoas falavam ‘ai, que tragédia’. Eu não quero que tenham pena de mim, nem de meu filho. Quero que respeitem a minha dor e respeitem que eu lido de uma forma diferente da que a maioria das pessoas lida. Eu não imaginava minha vida longe do meu filho, mas eu tive o meu tempo, depois que eu precisei desse meu primeiro momento para elaborar meu luto, a reclusão, e ficar meio que vegetando. Foi um tempo pequeno mas era o que eu precisava. 

Foi fundamental eu ter buscado ajuda. Foi fundamental o conhecimento que eu tinha e conhecer outras mães. Eu sei o que me ajudou e estou disposta a ajudar outras mães. O luto de perder um filho é o pior da vida, mas tem uma pessoa que às vezes tem muito mais dificuldade de lidar com a perda de uma mãe do que eu tive para lidar com a perda do meu filho. Realmente, é uma dor alucinante, mas a gente não pode mensurar a dor do outro. 

As pessoas ficam tão envolvidas com a sua dor, de se imaginar naquele lugar, de não saber como agiriam naquela situação que não querem chegar perto de você. É um mecanismo de autodefesa, mas às vezes as pessoas podem ajudar simplesmente com uma mensagem, um gesto de atenção. Tem grupos de mães aqui em Salvador e foi muito importante trocar experiencia. 

*** As pessoas podem ver que eu lido de uma forma mais forte e elaborada, mas não significa que não eu sofri. Eu diria para outras mães que elas respeitem o momento delas, que é possível a gente aprender a lidar e passar a ter uma saudade que nos conforte. 

Independentemente do que as pessoas falam, a gente tem que escutar o nosso coração e ter a consciência de que a gente nunca vai deixar de ser mãe.  A ligação de amor é eterna. A gente tem que ter um olhar para as coisas que nos ajude. Podemos olhar de forma pessimista ou de uma forma que nos dê força.Mesmo com a perda do meu filho, tenho a consciência de que fui a melhor mãe que eu poderia ser todos os dias da vida dele. Temos que viver o amor de forma intensa. Mesmo diante de tudo que vivi, consegui buscar forças. A gente precisa, sim, demarcar o nosso lugar de mãe, por mais que as pessoas não lembrem que a gente é mãe.

A gente não tem dimensão da nossa força. O amor materno é mais forte do que tudo, então quando a gente passa por uma situação dessas, a gente consegue acessar uma força que a gente nunca imaginou que teria.  Se Deus me perguntasse se eu viveria tudo de novo pra ter meu filho por 2 anos 5 meses na minha vida, eu não tenho dúvidas: eu viveria tudo de novo, passaria tudo de novo. Me sinto privilegiada por ter sido mãe dele por dois anos e cinco meses. 

As pessoas precisam aprender a lidar que quando se perde um filho, aquela mãe continua existindo. Ela não pode ser apagada junto à morte de um filho. Ela não deixou de ser mãe. É muito importante que as pessoas pensem sobre isso.