Para que o dia amanheça

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  • Kátia Borges

Publicado em 26 de janeiro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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A festa seguia lá embaixo quando ela descobriu por acaso a existência de um pequeno terraço ao tentar achar o banheiro. Ali estavam o céu de janeiro e as estrelas. Uns poucos convidados, já meio altos, disputavam o espaço entre cigarros e baganas. Ficaria por ali, decidiu, acariciando o próprio maço com os dedos ao ritmo do som abafado que subia do apartamento. Sob seus pés, todo barulho a um passo.

Desde adolescente, gostava desses intervalos no meio das festas, quando as pessoas se dividiam por afinidade e cada grupo escolhia um canto antes que amanhecesse. A música então diminuía e virava trilha sonora para os encontros e desencontros da noite. Seguiria na memória em uma espécie de looping. Ela estava bem sozinha ali naquele terraço, sequer forçava os olhos no escuro para ver quem eram os outros.

Não estão aqui, os meus personagens – pensava com uma ponta de orgulho. Já não se deixava fascinar tão fácil quanto na juventude. Talvez um poema qualquer surgisse da cidade. Podia imaginar alguém que se movimentava na rua em frente, solitariamente, dentro da madrugada. Os versos aparecendo, insistentes, um após o outro. Mas de que valeria se os guardasse? Há tempos desistira da poesia.

Havia coisas mais urgentes e tangíveis agora que já não se deixava fisgar tão facilmente. Como em “O último sortilégio”, a grande deusa não movia mais as folhas do encantamento, e cada ser ou objeto atendia por seu nome. Nem mesmo o vento úmido da madrugada tocaria aquele instante. Ela se defenderia, se fosse o caso, fecharia o casaco sobre o peito com o cuidado de quem se protege de uma invasão.

Teria que reencontrar a própria voz. Logo ela, que odiava o verbo ter em todos os seus modos. Temia não a localizar por dentro, perdida estava desde o último livro. Conversara com uma amiga ainda há pouco lá embaixo, e quase aos gritos, sobre a necessidade de construir pequenos abrigos pessoais nesses tempos de feiura e fúria. É preciso não dar de comer aos urubus, como dizia Torquato Neto.

Por haver tanto barulho em torno é necessário inventar algum sossego ou adoeceremos, cairemos uns após os outros. A amiga comentou então de seu pequeno paraíso numa praia rústica e ela falou sobre como a paixão pelos livros havia sido desde sempre seu refúgio. Em todas as casas onde morei, ela disse, carreguei comigo caixas e mais caixas. Não me vejo como Marie Kondo, elegendo apenas trinta títulos.

Não sei você – a amiga falou, como se não tivesse entendido –, mas às vezes eu me pego com o coração aos pulos sem qualquer motivo. Se ainda insisto na maldade de escrever, a outra continuou – também incompreensível –, a culpa é da minha avó que contava histórias. Naquela época faltava luz em nossa rua quase todo dia. Meu pai possuía um candeeiro a querosene que parecia um foguete da NASA.

Algumas coisas não se conversa durante uma festa, diz o bom senso. É preciso compor uma imagem de tal modo que ela nos siga a todo canto como uma sombra. Porém, uma sombra é também algo incerto. É luz que esbarra nos objetos, história que vaga a esmo nas gavetas da memória. Mais vivas do que nunca, algumas lembranças esperam que alguém gire a chave na fechadura.

A desmedida com que se vivia cada acontecimento, recorrentes pesadelos e tudo aquilo que foi infância, ainda vibra de algum modo. E tudo isso pensava a moça no pequeno terraço da casa onde acontecia a grande festa. Talvez tenha conseguido finalmente reconhecer a música que tocava em algum momento, pois os outros convidados ficaram surpresos ao perceber que ela dançava.