Pernambuco precisa devolver à Bahia uma das maiores relíquias da Invasão Holandesa

Obra autografada de quase 400 anos conta história da retomada de Salvador

Publicado em 8 de dezembro de 2019 às 15:00

- Atualizado há um ano

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Um livro de 391 anos repousa em uma redoma retangular em terras pernambucanas. Ele faz parte do acervo do Instituto Ricardo Brennand, um agigantado museu privado com obras raras coletadas de várias partes do mundo.

O exemplar é valioso não apenas pelo tempo de preservação. Ele conta a história da retomada da Cidade do Salvador após a Invasão Holandesa, que subjugou a capital da colônia por onze meses, entre 1624 e 1625. O livro foi escrito pelo espanhol Thomas Tamaio de Vargas, um cronista da casa real da Espanha. No período da invasão, Portugal e Espanha formavam um só país. A União Ibérica durou sessenta anos e foi estabelecida durante as guerras pelo trono luso – um Game Of Thrones, antes de George Martin escrever o seu, com direito a dublagem em português.

O resumo da trama é o seguinte: o trono de Portugal ficou vago após o desaparecimento de Dom Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir. O sucessor era Cardeal Henrique, bem velhinho e já meio broco com seus mais de 70 anos. Com o fim de Cardeal, veio o rio vermelho... de sangue. Três herdeiros disputaram a coroa. Filipe II, Rei da Espanha, venceu contenda, ocupou o trono e inaugurou a dinastia Filipina, anexando Portugal à Espanha.

Por consequência, o Brasil se tornou território espanhol. Se isto tivesse persistido mais tempo, provavelmente, hoje gostaríamos mais de paella que moqueca. E, em alusão à famosa dança espanhola, o atual campeão da Libertadores teria uma pequena alteração em sua grafia: Clube de Regatas Flamenco.

O fato é que durante seis décadas o “portunhol” não foi sinônimo de enrolação linguística e, neste exato período, os holandeses invadiram e ocuparam Salvador. O mais importante porto da América do Sul era ponto de escoamento do açúcar e chegada de negros escravizados, vindos da África. Os holandeses eram concorrentes no mercado das grandes navegações e já tinham tentado içar suas fragatas na baía de Todos os Santos em duas outras oportunidades – em ambas foram abatidos pelos canhões e fortes baianos. Em 9 de maio de 1624, no entanto, a dominação foi concretizada sob forte artilharia. Salvador, concebida para ser uma cidade-fortaleza, foi dominada pelo exército dos Países Baixos em apenas um dia. Os soldados desembarcaram diretamente na praia do Porto da Barra para ocupar a capital da colônia. O governador geral Dom Diogo Mendonça Furtado foi aprisionado (no que hoje é o Palácio Rio Branco) e levado para Amsterdã. Os holandeses ficaram aqui por um ano, até uma investida organizada pelo exército luso-espanhol fazer frente e expulsá-los.

História do livro E é a história deste confronto que o livro de Tamaio de Vargas conta. O livro, que está sob a posse dos nossos vizinhos (quase escrevi rivais) pernambucanos, é uma edição autografada pelo próprio autor, no século XVII. Talvez a única no mundo com tal rubrica, segundo registra os arquivos do próprio museu Ricardo Brennand.

O conteúdo da obra na íntegra, no entanto, está disponível na web. Todo o livro foi digitalizado e pode ser acessado diretamente na biblioteca da Câmara dos Deputados. É possível baixar em PDF aqui.

A questão não é ter acesso ao livro, mas sim ter a posse definitiva desta relíquia histórica, que por contar parte fundamental da nossa história, deveria constar nos museus baianos. E é curioso lembrar que, assim que os holandeses foram escorraçados de Salvador, foram ocupar Recife. E lá em Pernambuco permaneceram por 24 anos, de 1630 a 1654.

Durante a resistência baiana, os colonos portugueses, os negros africanos e os índios tupinambás tiveram papel fundamental na luta de retomada do território. Sobretudo estes últimos, que causavam pânico nos holandeses por meio da habilidade flecheira e do estranho hábito canibal de se alimentar dos prisioneiros de guerra capturados.

Em 1994, quando se completou 370 anos da invasão holandesa na Bahia, Brasil x Holanda se enfrentaram nas quartas-de-final do Mundial de futebol, nos Estados Unidos. O segundo gol brasileiro – em um jogo que terminaria 3 a 2 para os canarinhos, futuros campeões– foi marcado pelo baiano Bebeto. Ele comemorou o gol balançando os braços, como se ninasse uma criança. Isso fez muita gente acreditar que homenageava seu filho Matheus, nascido durante o mês de disputa do torneio.

A verdade, no entanto, é que Bebeto provocou os holandeses sacudindo os braços fazendo referência às redes de cipós e trepadeiras, penduradas na área externa das ocas, usadas pelos índios para o descanso, depois que se alimentavam da carne dos invasores dos Países Baixos. Um legítimo golpe baixo do baiano.

Falando em futebol, a melhor forma de resolver essa pendenga de quem deve ficar com o livro de quase quatro séculos, era marcar um amistoso entre Bahia x Sport. Quem vencesse o confronto entre os dois principais times de seus respectivos estados ficaria com a posse definitiva da relíquia. Bora Bahêaa!