Persistência: após oito derrotas, secretária executiva vira Deusa do Ilê Aiyê

Daniele Nobre já havia sido princesa do bloco por três vezes

Publicado em 17 de fevereiro de 2019 às 08:20

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: André Frutuôso/ Odú Comunicação/Divulgação

Persistência e foco no objetivo de ser a mais bela dos belos. Após oito tentativas, o sonho da secretaria executiva Daniele Nobre, iniciado ainda na infância, foi realizado na noite deste sábado (17) quando ela foi coroada Deusa do Ébano 2019 do Bloco Ilê Aiyê.

Aos 30 anos, Daniele foi eleita Rainha do Ilê Aiyê em festa realizada no Senzala do Barro Preto, no Curuzu, em uma noite mais que especial por celebrar duas datas importantes da agremiação: os 45 anos do bloco e os 40 anos da Noite da Beleza Negra, considerado um dos principais eventos do pré-Carnaval de Salvador.

Dos bastidores ao recebimento do manto - veja fotos da coroação da nova deusa do ébano:

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Na final, ela concorreu com outras 14 candidatas e se destacou não só pela beleza, mas também pela performance e pelo figurino, além de ter sido uma das que mais ovacionadas pela plateia que acompanhava o desfile no espaço lotado. 

Eleita deusa, Daniele desfilou pela primeira vez no Ilê em 2008. Antes, sempre quis sair no bloco, mas era impedida pela mãe, que não permitia que ela desfilasse por ser menor de idade. Ao atingir a maioridade, desfilou após ser levada pela irmã mais velha.  

"Eu achava tudo lindo, mas não achava que poderia estar ali, achava que não era digna de estar ali. Mas o bloco te ousa, você fica ousada. Então, decidi participar, decidi que iria concorrer", lembra ela, que disputou o posto de Rainha do Ilê já em 2008. 

Veja a primeira dança de Daniele como deusa do Ilê:

Na primeira participação, ela ficou em terceiro lugar, o que lhe mostrou que o sonho era possível. "Aquele terceiro lugar me deu ousadia, vi que era possível. Em 2013, terminei em segundo, e em 2016, segundo de novo. Eu assistia aos meus vídeos e me criticava. Percebi as coisas que eu falhava, que precisava melhorar", revela. 

Convicta e decidida a ser Deusa do Ébano, ela resolveu não participar no ano passado. Aproveitou o tempo para se dedicar aos estudos e se aprimorar. "Eu não concorri no ano passado para estar aqui. Preferi me resguardar. Estudei, me aprimorei. Sabia que, para vencer, precisaria de algo novo", disse ela que sabia do peso da responsabilidade da disputa deste ano.

Afinal, com 30 anos, esse era o último ano permitido pelo concurso para poder entrar na disputa e realizar seu sonho de menina. Se não fosse eleita agora não poderia ser mais. "Vim com o foco e a persistência que aprendi a ter com o Ilê", resume Daniele.  

A preparação começou a ser intensificada nos últimos seis meses. "A preparação envolveu danças, preparação espiritual, mental, porque para estar naquele palco não é fácil. Sabia que precisava chegar ao primeiro, estudando, olhando, assistindo as candidatas passadas, vendo shows, ensaios. Vi vídeos das rainhas dançando", contou.

Formada em secretariado e pós-graduada em administração estratégica, Daniele é empreendedora e tem um brechó. Ao realizar o sonho, ela ressalta que a disputa entre as 15 finalistas tem um significado diferente. "Todas somos belas, não há mais ou menos belas. Esse título enaltece a mulher. Não é financeiro. Fui eleita Deusa onde minha beleza é aceita, não preciso ter o nariz afinado nem a pele clara nem bunda grande, nem estar expondo meu corpo. Sou deusa pela minha dança, pela minha beleza, pelo meu nariz amassado", enfatizou.

O posto agora ocupado por Daniele pertencia a Jéssica Nascimento, a deusa de 2018, que emocionou o público. Assista: 

A noite de festa teve como ápice a eleição da Deusa, mas foi marcada ainda por outros momentos especiais. Além de homenagens, a Senzala do Barro Preto foi palco de fortes discursos políticos e de crítica à disparidade de oportunidades entre brancos e negros na sociedade. A morte da vereadora carioca Marielle Franco e do estudante Pedro Gonzaga, morto por um segurança do supermercado Extra no Rio de Janeiro, foram lembrados durante a noite. Uma das finalizadas, Lumena Aleluia chegou a iniciar sua apresentação com um cartaz estampado pelo rosto de Marielle, em sinal de protesto contra a falta de respostas pela morte da vereadora.

Além de Daniele, outras duas finalistas foram coroadas no segundo e terceiro lugar. A segunda foi a professora de dança Nana Sarah, 31 anos, que foi a sexta a se apresentar no palco. Moradora do Rio Vermelho, ela participou do concurso pela primeira vez. Na terceira posição ficou a dançarina Gleicyellen Oliveira, 21 anos, moradora do Curuzu e também estreante na disputa.

Ela foi a 13ª a se apresentar para o público e para o júri, que teve entre os integrantes os professores da Ufba Nadir Nóbrega Oliveira, PHD em artes cênicas, e Amélia Conrado, especialista em coreografia. O idealizador da Noite da Beleza Negra, Sérgio Roberto, também integrou o corpo de jurados, assim como Aliomar Almeida, diretor e vice-presidente do Ilê Aiyê. 

As 15 candidatas entraram na Senzala do Barro Preto ao som da anfitriã Band’Aiyê, que encantou o público antes da apresentação das finalistas. Um dos momentos mais emocionantes da noite foi uma homenagem pelos dez anos de morte de Mãe Hilda Jitolu, iyalorixá que deu o nome de batismo e definiu a linha filosófica do trabalho do Ilê, e é mãe biológica de Antonio Carlos Vovô, Vivaldo Benvindo, Dete Lima e Hildelice Santos, fundadores e diretores do bloco.

Se 40 anos significam 40 deusas, reunir algumas delas no palco foi uma das cenas da performance em homenagem ao aniversário. Primeira Deusa do Ébano eleita, Mirinha (Rainha de 1979), que além de ter na sua vida a marca de um título que fez uma revolução na sua maneira de enxergar a si e ao mundo, emocionou quem lotou a Senzala do Barro Preto.  Assista: 

A homenagem ocorreu no intervalo das apresentações das 15 finalistas e contou com um espetáculo musical acompanhado de discursos sobre Mãe Hilda. Os apresentadores do evento lembraram, após a homenagem, que neste sábado a jornalista Maju estreou na bancada do Jornal Nacional, da TV Globo, e se tornou a primeira mulher negra a apresentar o telejornal. 

Entre as atrações musicais, o cantor Lazzo Matumbi subiu ao palco e cantou “Ilê Aiyê”, canção de Gilberto Gil cujo refrão, que Bloco é Esse?, constitui o tema do Carnaval 2019 da entidade. Gil, ao lado de Daniela Mercury e Caetano Veloso, fecharam com chave de ouro a noite ao se apresentarem após a eleição. O primeiro a subir no palco foi Gil, que foi uma apresentação apenas com voz e violão. Daniela foi a segunda a entrar e cantou, junto com Gil, "De Deus, De Alah". 

Veja vídeo de Gil com Daniela: 

Em seguida Caetano entrou no palco e, também com voz e violão, cantou "Lua de São Jorge" e "Reconvexo". Daniela voltou ao palco, assim como a banda anfitriã, para cantarem juntos a canção "Proibido o Carnaval". 

Veja vídeo de Caetano de Daniela:

Para Lazzo, a mensagem propagada pelo Ilê lá no início, há 45 anos, ainda é necessária hoje. "O Brasil ainda não se reconhece. Precisamos toda hora estar tocando o tambor ou o sino para alertar. Tudo isso aqui representa a continuidade de uma luta que não se refere somente à estética, mas sim à necessidade de unir cada vez mais todos em prol de um mundo melhor", afirmou ao CORREIO. 

Presidente do Ilê, Vovô ressaltou a importância da Noite da Beleza Negra como manifestação cultural para a Bahia, para o país e  também para o mundo. "São 45 anos sem deixar de desfilar. Então, é uma data muito especial para nós, ainda mais pelos 40 anos da noite, que mudou o conceito de beleza, de valorização da mulher negra", afirmou, ao lembrar da homenagem a Mãe Hilda. "São dez anos sem ela. Sabemos o que ela significa, e a presença dela continua nas músicas, nas mensagens, continua presente", disse. 

No público, a sensação era de encantamento, desde as pessoas que já participaram de outros anos até aquelas que foram à Noite da Beleza Negra pela primeira vez. Foi o caso da estudante Fernanda Ribeiro, 22 anos, moradora da Pituba. "Já tinha curiosidade para vir. Achei incrível. As músicas, as próprias candidatas, o discurso político, tudo isso aqui representa muito para nós, negros", afirma. 

A funcionária pública Raileide Silva, 42, saiu de Cajazeiras para participar da festa pelo quarto ano. Para ela, a valorização da beleza negra é um legado da festa. "É uma festa que representa a todos nós, que valoriza a beleza negra e, acima de tudo, eleva a autoestima", diz, afirmando não torcer para nenhuma candidata específica. "Acho que, no final, quem ganha é o de menos. O mais importante é a mensagem", ressalta. 

Já a assistente comercial Isaura de Paula, 43, foi para torcer exatamente pela vencedora, Daniele Nobre. Ela contou que participa já há 15 anos. "Essa festa representa a valorização da mulher negra, promove uma identificação cultural muito necessária nos dias de hoje", afirmou. 

CONHEÇA A NOVA DEUSA DO ÉBANO

Nome: Daniele Nobre

Idade: 30 anos

Bairro onde mora: Bonocô

Profissão: Secretária Executiva por formação, mas trabalha com brechó de moda e participa de feiras de rua. Empreendedora da área de consumo sustentável.

O que a motivou: “O sonho de ser Deusa surgiu desde que eu saí pela primeira vez no bloco. Fui levada pela minha irmã. Antes de sair no Ilê eu achava tudo lindo, mas não acreditava que eu poderia estar ali, por não acreditar que eu dançava bem. Não achava que eu era digna de estar lá, sabe? Mas depois que você conhece, o próprio bloco te ousa. É incrível como a pessoa fica ousada quando conhece sua própria história”.

Dica para as futuras concorrentes: “Primeiro de tudo se preparar espiritualmente, assistir as candidatas passadas, vir para os shows e ensaios do bloco e observar as rainhas dançando. Ppara quem já participou, minha dica é assistir seus próprios vídeos e fazer uma autocrítica. Observar suas falhas e pensar o que pode trazer de novo para cativar os jurados”.

Sua mensagem: “A Beleza Negra não é uma briga pelo primeiro lugar, é pelo empoderamento feminino. Todas somos belas, mas esse título enaltece a mulher. Não é financeiro nem nada. É apenas o reconhecimento de ganhar um concurso em um lugar onde minha beleza é aceita. Não preciso ter nariz afinado, nem a pele clara, nem bunda grande, muito menos expor meu corpo. Eu fui aceita e me tornei Deusa pelo conjunto, pela minha dança, pela minha beleza, pelo meu nariz amassado. É surreal.”

Preparador de moda e beleza: Jean Nogueira.