Polícia não tem indícios de participação de movimentos sociais e partidos em depredação de moradias populares em Pernambuco

Vídeos virais no Facebook, YouTube, Twitter e TikTok enganam ao atribuir aos movimentos sociais MST e MTST e aos partidos de esquerda a depredação de um residencial do programa Minha Casa Minha Vida, em Santa Cruz do Capibaribe, em Pernambuco

Publicado em 22 de outubro de 2021 às 21:30

- Atualizado há 10 meses

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Conteúdo verificado: Vídeos que circulam nas redes sociais mostram um imóvel depredado do Minha Casa Minha Vida, em Pernambuco, e colocam a culpa nos movimentos sociais do MST e MTST e nos partidos de esquerda. São enganosos os vídeos que circulam nas redes sociais, um deles, inclusive, compartilhado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), afirmando que casas construídas com recursos federais na cidade de Santa Cruz do Capibaribe, em Pernambuco, foram depredadas por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e do Partido dos Trabalhadores (PT). A Polícia Federal diz não ter indícios de que partidos ou movimentos sociais tenham qualquer ligação com os atos de vandalismo.

Procurados pelo Comprova, o MST, o PT e os dois movimentos que usam a sigla MTST em Pernambuco negaram participar da ocupação. Em sites de notícias da cidade também não há nenhuma menção à participação de grupos políticos ou movimentos sociais no processo de ocupação dos imóveis. Eles também afirmam que não têm nenhuma relação com a depredação do residencial, cuja autoria ainda não foi determinada pelas autoridades.

O ex-candidato a vereador pelo PP (Progressistas) Abimael Santos, um dos autores dos vídeos, diz que se baseou em áudios e vídeos de uma suposta líder da ocupação do residencial, que menciona fazer parte do MST e do MTST e fala em “tocar fogo” em pontos da cidade. O Comprova enviou os áudios e o vídeo em que a mulher aparece para os líderes dos movimentos. Todos negaram ter relação com ela e dizem que desconhecem quem seja.

O Comprova considerou o conteúdo enganoso porque ele usa dados imprecisos e confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Como verificamos? O Comprova buscou informações sobre o caso em matérias jornalísticas e no site oficial da prefeitura de Santa Cruz do Capibaribe. Além disso, procurou as assessorias de imprensa da Polícia Federal, da Polícia Civil, da Caixa Econômica Federal e do município pernambucano.

Entrevistamos, por telefone e WhatsApp, o presidente do PT no estado, Doriel Barros; o coordenador do MST em Pernambuco, Jaime Amorim; e os coordenadores de dois movimentos que usam a sigla MTST em Pernambuco, Vitória Genuíno e Marcos Cosmo.

Por fim, procuramos Abimael Santos, autor de um dos vídeos que foi até o residencial após os episódios de depredação. O primeiro contato com ele se deu através da sua conta no Instagram, por onde ele passou um número de celular.

Verificação Residencial Cruzeiro O Residencial Cruzeiro é um projeto de 500 casas no bairro da Palestina, em Santa Cruz do Capibaribe. As obras começaram antes da gestão Bolsonaro, com o cadastro para receber os imóveis em setembro de 2018. As casas foram construídas em uma parceria entre a prefeitura e a Caixa Econômica Federal pelo Minha Casa Minha Vida — esse programa, criado em 2009, foi substituído pelo Casa Verde e Amarela em 2021. A obra deveria ter sido entregue em 2019, mas atrasou e a previsão era que ficasse pronta em novembro de 2021.

A obra completa estava orçada em R$ 35 milhões e a estimativa era que 2 mil pessoas fossem beneficiadas.

Em vídeos que circulam nas redes sociais, pode-se ler detalhes sobre a obra em uma placa em frente ao empreendimento, que confirmam o que foi apurado pelo Comprova: o Residencial Cruzeiro faz parte do programa Minha Casa Minha Vida e conta com um valor total de R$ 35 milhões para a construção de 500 unidades habitacionais. O início da obra foi em 28 de novembro de 2017 e a previsão de término era 28 de maio de 2019.

Em 21 de agosto deste ano, a prefeitura informou que as obras estavam 91% concluídas. A previsão é que elas fossem entregues em novembro. Mesmo quase três anos depois do início do cadastramento, ainda era possível ser incluído no programa. Em agosto, já havia preocupação com invasões e depredações e, por isso, o município informou que estava reforçando a segurança no local, com a Guarda Municipal e apoio da Polícia Militar.

Pouco tempo depois, no dia 29 daquele mês, as casas foram ocupadas, como informou o G1. A Caixa Econômica Federal disse que estava providenciando um processo de reintegração de posse.

Dois blogs locais (Ney Lima e Merece Destaque) dizem que quem participou da ocupação foram pessoas que chegaram a ter o nome na lista de contemplados, mas, depois, foram retirados e, portanto, não receberiam as casas. O Comprova questionou a Caixa a respeito dessa informação, mas a instituição financeira se limitou a dizer que “o cadastro, indicação e seleção dos beneficiários são atribuições do Ente Público”.

No dia 23 de setembro, a Justiça Federal determinou a reintegração de posse do residencial. Segundo a decisão, a ocupação teve início com 50 pessoas, mas já havia evoluído para cerca de 200 famílias. O texto da Justiça Federal também diz que, no dia 21 de setembro, policiais e guardas civis foram recebidos com pedradas ao tentar cortar a luz do local. Seis pessoas foram detidas e levadas para a Delegacia de Santa Cruz do Capibaribe. Não há menção a qualquer partido ou movimento social.

No dia 6 de outubro, as polícias federal, civil e militar foram ao local para comunicar um prazo de cinco dias para desocupação dos imóveis. Um dia antes do encerramento deste prazo, no dia 10, houve as depredações e os furtos nas casas. A última família deixou o residencial na segunda-feira,18 de outubro, segundo informou a gestão municipal.

Depredação Houve depredação no residencial, como mostram sites da região. Segundo o blog do Ney Lima, pessoas atearam fogo em algumas casas. Em outras, haviam sido furtadas pias, torneiras, lâmpadas, caixas d’ água e portas. As imagens, tanto externas quanto internas, mostram que se trata do mesmo local. O site cita o fato de os imóveis estarem sendo ocupados, mas não apresenta o nome de nenhum movimento ou partido. O texto foi postado no dia 11 de outubro, afirmando que as depredações teriam ocorrido no final de semana anterior (9 e 10 de outubro).

Em nota enviada ao Comprova, a Superintendência da Polícia Federal em Pernambuco afirmou que há um inquérito em andamento na Delegacia de Caruaru, cidade a 50 quilômetros de Santa Cruz do Capibaribe. “Até o momento não foi identificada a participação de partidos políticos e/ou movimentos sociais”, diz a PF. A Polícia não informou a autoria, portanto, não há como saber se as pessoas que ocupavam o local, ou quais delas, foram responsáveis pelos prejuízos nas moradias.

A empresa responsável pela obra, J3 Empreendimentos, ainda irá fazer o levantamento dos danos até o final de outubro. A Caixa enviou uma nota ao Comprova em que diz que “procederá a análise técnica necessária e adotará os procedimentos pertinentes para condução do processo de retomada das obras, à luz das regras do Programa”.

PT, MST e MTST O deputado estadual Doriel Barros, presidente do PT em Pernambuco, disse ao Comprova que o partido não tem relação com a ocupação ou com os fatos narrados no vídeo. “O PT já acionou seu jurídico, vamos processar esse indivíduo”, informou ainda.

Em Pernambuco, existem dois movimentos que utilizam a sigla MTST. O primeiro é um braço local do grupo liderado nacionalmente pelo ex-presidenciável Guilherme Boulos (PSOL). Eles negaram qualquer relação com a ocupação mostrada no vídeo. “Podemos afirmar com tranquilidade que não temos absolutamente nada a ver com esse caso. Inclusive porque nossa atuação nunca se deu em Santa Cruz do Capibaribe. Só em Recife e em Olinda, até então”, disse Vitória Genuíno, coordenadora estadual do movimento, ao Comprova.

O segundo grupo é o MTST Pernambuco, vinculado à União Nacional por Moradia Popular (UNMP). Segundo Marcos Cosme, coordenador estadual, o movimento participou da negociação para a construção do residencial junto com o ex-prefeito de Santa Cruz, Edson Vieira, e com o então ministro das Cidades, Bruno Araújo, e conseguiu ter várias famílias sorteadas para receber parte das 500 casas. Quando houve a ocupação, em agosto, o MTST Pernambuco diz ter sido contra e repudiado publicamente.

“Nós somos, por uma questão de princípio, contra ocupação em qualquer empreendimento construído para um determinado grupo. Porque quando uma gestão, seja municipal, estadual ou federal, está construindo algumas casas, nós entendemos que esses empreendimentos já têm famílias cadastradas. Então, a posição do MTST é contra que se ocupe qualquer empreendimento construído ou em fase de construção. Mesmo que ele esteja abandonado, nós não ocupamos, porque entendemos que aquele empreendimento já tem um público, tem uma finalidade, e tem famílias no aguardo”, explicou Cosme.

O MTST Pernambuco enviou um vídeo oficial com um posicionamento, em que reafirma que as alegações do vereador Abimael são enganosas e que eles não são responsáveis pelo ataque.

No Instagram, o MST soltou uma nota oficial, em que afirmou que não destruiu as casas em Pernambuco e que “vai processar um militante bolsonarista que espalhou afirmações falsas sobre uma suposta depredação”.

Procurada pelo Comprova, a assessoria da Prefeitura de Santa Cruz do Capibaribe afirmou que, com relação aos envolvidos, não poderia passar nada oficialmente, porque o caso está sob investigação da Polícia Federal.

Abimael Santos Abimael dos Santos Pereira foi candidato a vereador em Toritama em 2020, pelo PP (Partido Progressistas). Toritama fica a apenas 20 quilômetros de Santa Cruz do Capibaribe. Ao se registrar na Justiça Eleitoral, Abimael disse que era eletricista e que possuía R$ 135 mil em bens (dois imóveis e um automóvel). Ele teve 677 votos e ficou na suplência.

No Instagram, ele se apresenta como apoiador do presidente Jair Bolsonaro, “patriota” e cristão. Também diz ser ativista do movimento de direita Liberta Pernambuco.

O Comprova entrou em contato com Abimael por telefone e o questionou a respeito da origem da história e se tinha provas do suposto envolvimento de movimentos sociais e do PT nos atos de vandalismo.

Abimael encaminhou para a reportagem um áudio em que uma mulher, supostamente envolvida na ocupação e na depredação das casas, alega primeiro que “o nosso movimento é o sem terra” e depois que seria uma “dirigente regional de sem tetos”. Segundo ele, a gravação foi feita por um colega “infiltrado” durante a ocupação.

Ele também enviou um vídeo em que outro blogueiro bolsonarista conversa com uma mulher de voz parecida no Residencial Cruzeiro. Ela diz que estaria pronta para “guerrear” e “tocar fogo dentro de Santa Cruz, BR, prefeitura, o que for” caso as pessoas fossem retiradas do local pelas autoridades.

O Comprova encaminhou o vídeo aos dirigentes de movimentos sociais consultados anteriormente. Eles disseram desconhecer essa pessoa. “Ela não integra o MTST. Se ela fosse uma mera militante do nosso movimento, tenha certeza que nós seríamos os primeiros a denunciá-la. Eu nunca vi essa senhora”, respondeu Marcos Cosme, coordenador estadual do MTST Pernambuco. “Não a conhecemos”, afirmou Vitória Genuíno, coordenadora nacional do MTST. “Nunca vimos ela”, afirmou Jaime Amorim, do MST Pernambuco.

Quanto ao suposto envolvimento do PT, o áudio não traz nenhuma informação nesse sentido. A mulher que estaria envolvida na ocupação apenas fala a certa altura que tenta contato “com advogado e com deputado para dar o documento para quem tá aqui dentro”, sem identificar quem seriam.

O autor do vídeo negou ter espalhado desinformação. Ele sustenta que obteve uma “prova concreta” com os áudios da mulher e disse que aguarda para discutir o caso na Justiça com o MST. “Estamos baseados na moça que diz ser do MST. Se ela diz que é do MST, eu não posso dizer que foi outra pessoa. Se ela cometeu falsidade ideológica dizendo que era do MST, então ela é que tem que pagar pela consequência não só do dano que causou, mas também de ter exposto a entidade.”

Compartilhado por Bolsonaro A história de que movimentos sociais e partidos de esquerda seriam os responsáveis pela depredação teve ajuda de políticos para ganhar alcance nas redes. Bolsonaro, por exemplo, compartilhou no Facebook e Twitter um outro vídeo, que não é de Abimael, mas contendo essa mesma alegação.

Na legenda, o presidente coloca: “Marginais depredaram 800 casas que seriam entregues em novembro. Santa Cruz do Capibaribe/PE, cidade onde estive em 04/setembro último”. O número citado é maior até que a quantidade de casas que estão sendo construídas no Residencial Cruzeiro, 500 ao todo. O vídeo traz uma narração que acusa o “MTST, um dos braços do movimento sem terra (sic)” de ter promovido o ato de vandalismo “muito provavelmente influenciado por partidos de esquerda”. Só a peça compartilhada pelo presidente teve 1,3 milhão de visualizações no Facebook. Outros parlamentares da base aliada, como o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) e a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), também espalharam o boato, assim como o assessor especial da Presidência, Mosart Aragão Pereira. O mesmo vídeo também ganhou tração em páginas de apoio ao presidente, que investem em uma narrativa de que os atos de vandalismo teriam como objetivo evitar que o governo Bolsonaro entregasse a obra.

A cidade Santa Cruz do Capibaribe foi a única cidade de Pernambuco onde Jair Bolsonaro venceu no segundo turno das eleições de 2018. Ele teve 53,83% dos votos, contra 46,17% do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT).

No início de setembro, quando visitou o estado, Bolsonaro fez uma “motociata” pelas principais cidades do polo de confecções que teve início em Santa Cruz. Foi o último evento público do presidente antes dos atos convocados para o 7 de setembro.

Por que investigamos? Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre as políticas públicas do governo federal, pandemia e eleições que tenham viralizado nas redes sociais. Os vídeos analisados tiveram mais de 575 mil visualizações no YouTube, Facebook e TikTok, além de terem sido compartilhados por autoridades, o que influencia no debate público.

Os conteúdos iguais ou similares foram considerados falsos pelas agências de checagem Lupa, Aos Fatos e Boatos.org.

O Comprova também já mostrou ser falso que o MST tenha destruído uma estação de energia no Amapá; que é falso que o Exército tenha apreendido madeira ilegal ligada a ONGs e ao MST; e que postagens acusavam, sem provas, o MST de ter relação com as queimadas na Amazônia e no Pantanal.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

*Esta checagem foi postada originalmente pelo Projeto Comprova, uma coalizão formada por 33 veículos de mídia, incluindo o CORREIO, a fim de identificar e enfraquecer as sofisticadas técnicas de manipulação e disseminação de conteúdo enganoso que surgem em sites, aplicativos de mensagens e redes sociais. Esta investigação foi conduzida por jornalistas do Jornal do Commércio, piauí e Estadão, e validada, através do processo de crosscheck, por cinco veículos: Rádio BandNews FM, Folha de S.Paulo, Poder 360, Gaúcha ZH e SBT.