Pollyana e pombos digitais

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  • Malu Fontes

Publicado em 2 de abril de 2018 às 07:00

- Atualizado há um ano

O brasileiro é hoje, antes de qualquer coisa, um povo que dorme e acorda com medo: medo de levar um tiro e medo de não ter futuro. Qualquer brasileiro que tenha nascido dos anos 70 para cá, nunca viveu um clima tão medonho quanto esse que o país hoje respira, sob todos os aspectos.

O Brasil parece estar diariamente caindo num precipício sem fim, descendo aceleradamente numa avalanche de lama podre, feiura, agressividade, violência, sangue, corrupção, desesperança e tiros.

Até bem pouco tempo, soava muito esquisito ver os brasileiros ‘fazendo a Pollyanna’, a menina do jogo do contente, sempre repetindo o quanto o brasileiro é cordial, gentil, amoroso, acolhedor e outros adjetivos do gênero.

Diante dessa tese, sempre ficava aberta a equação: mas se o brasileiro é tudo isso, de que outro país ou planeta vêm os responsáveis por cerca de 60 mil homicídios por ano, a onda de corrupção que atravessa o país de ponta a ponta, a indiferença da dor do outro entre as classes sociais, etc e tal?

NETFLIX Aí chegou o tempo das redes sociais e o discurso da cordialidade das pollyannas ficou mais deslocado ainda, a não ser que fosse repetido por quem ganha a vida vendendo pacotes turísticos para estrangeiros virem ao Brasil. Nas redes, a cordialidade desde sempre foi avisada, antes do login e da senha, de que estava de fora do repertório.

Vieram as eleições de 2014, o climão do impeachment, a divisão entre nós e eles, entre coxinhas e petralhas, e todo mundo sabe como ficou o baba: golpes abaixo da linha da cintura e chutes na canela agora são fichinhas.

Amigos estão rompidos, parentes há muito se estranharam e ondas de intolerância fundamentalista e de agressividade gratuita continuam a engolir todo mundo, todos os dias. Um abismo parece ter se aberto escancaradamente entre os brasileiros. Briga-se agora por tudo. Por um turbante ou um torso na cabeça, por um colar ou adereço chinês no carnaval e por causa de livros escritos no século XVIII.

E briga-se sobretudo com o amigo de infância, por ele continuar assinando a Netflix após a estreia da série “O Mecanismo”, o mais recente objeto de ódio da esquerda e amor da direita.

POMBO DIGITAL Gente que você nunca viu na vida, e nem quer, lhe xinga de puta porque você posta, sem legenda, uma imagem da Veja Rio (Vejinha) com Gretchen na capa. Aliás, as redes criaram um tipo novo de entidade, o pombo digital.

São sujeitos de carne e osso, mas quase sempre invertebrados no que fazem. Vivem na lista de comentários de Deus e o mundo soltando sujidades, para usar um substantivo menos intolerante.

Em uma semana em que um ministro do Supremo tem a família ameaçada de morte, um outro ministro manda um jornalista enfiar uma pergunta na bunda e diferentes ministros mandam diferentes corruptos de alta plumagem saírem da cadeia e voltarem para casa, os pombos digitais continuaram firmes em seu propósito: espalhar sujeira contra desconhecidos sob a filosofia: não lhe conheço, não li, mas vou me meter na treta e lhe desqualificar.

Enquanto isso, o Brasil continua majoritariamente indiferente ao toque do terror se aprofundando. A violência aumentou no Rio de Janeiro mesmo sob a intervenção militar.

Um ônibus de uma caravana no PT foi alvo de tiros. Na Região Metropolitana de Salvador, a barbárie escreve mais um capítulo. Um assalto a um pedágio terminou com um tiro na cabeça de um policial, um empresário morto e um assaltante executado com saraivada de balas dentro de um hospital público.

E isso tudo são ‘apenas’ alguns dos fragmentos de um país em desconstrução. Como, no meio disso tudo, tanta gente supostamente saudável se permite limitar a vida sendo pombo de rede social? Lá fora estão tecendo o seu futuro. Ou a falta dele.