Primeira ópera negra baiana será reencenada no TCA após 24 anos

Lídia de Oxum se passa na Bahia pré-Abolição da Escravatura: 'É importante que todos falem sobre racismo', diz diretor

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  • Laura Fernades

Publicado em 20 de novembro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Diney Araújo/Divulgação
Inácio de Nonno e Elizeth Gomes interpretaram Lourenço e Lídia, na primeira versão, de 1995 por Foto: Edson Ruiz/Arquivo Correio

O fato de ser a primeira ópera negra do Brasil, e a primeira escrita em português e iorubá, já é motivo suficiente para a reapresentação da Ópera Lídia de Oxum no Teatro Castro Alves, 24 anos depois de sua estreia no mesmo palco. Celebrar os 80 anos de seu criador, o poeta, dramaturgo e compositor baiano Ildásio Tavares (1940-2010), é mais uma - e a principal - justificativa da volta do musical cuja temporada começa quinta (21), um dia depois do Dia da Consciência Negra, e segue até sábado (23), sempre às 21h.

Porém, o diretor de teatro Gil Vicente Tavares, 42 anos, filho de Ildásio, adoraria que Lídia de Oxum não precisasse ser montada. “Infelizmente, ela ainda está sendo montada para mostrar como somos. Um espelho da nossa sociedade atual, o que é muito triste”, lamenta Gil Vicente, diretor artístico da ópera ambientada nos engenhos de Santo Amaro da Purificação, em um Brasil pré-Abolição da Escravatura.

Junto com o irmão Ildazio Júnior, que assina a direção geral do espetáculo, Gil Vicente apresenta uma leitura contemporânea da ópera que era assinada por Ildásio Tavares com o maestro Lindembergue Cardoso (1939-1989). Grandioso, com 164 artistas no palco - sendo 75 músicos da Orquestra Sinfônica da Bahia, 60 coristas e 20 bailarinos -, o espetáculo Lídia de Oxum é o primeiro lançamento da Coleção Ildásio Tavares, que celebra os 80 anos do multiartista com atividades até 2021. Orquestra Sinfônica da Bahia durante o ensaio da nova versão da Ópera Lídia de Oxum (Foto: Diney Araújo/Divulgação) Além da ópera, serão montadas outras peças escritas por Ildásio, e reeditados quatro livros do autor (Xangô, Lídia de Oxum, Candomblés da Bahia e Nossos Colonizadores Africanos). Ambicioso, o projeto comemorativo realizado pela Viramundo, produtora de Ildazio Júnior, inclui uma versão compacta da Ópera Caramuru e a reedição do disco Os Orixás (1978), com capa de Carybé (1911- 1997) e lançamento em vinil, streaming, vídeo, fita cassete e show com coordenação musical de Letieres Leite.

“Meu pai tinha uma capacidade criativa fodida”, resume Ildazio, 53, com o jeito despachado que lembra o próprio pai. “Esse projeto é fruto de promessa, desafio, trabalho empreendedor e amor por meu pai, pela arte dele”, justifica. “Percebi que as pessoas não iam dar o real valor ao gênio que ele  foi”, completa Ildazio, que participou da primeira e da segunda montagem de Lídia de Oxum, em 1995 e 1996.

Ópera baiana É esse legado que o público verá, a partir de amanhã, no TCA. Mas quem estiver em busca de uma ópera negra, um aviso: a principal mudança que os filhos fizeram foi rebatizar Lídia de Oxum como uma “ópera baiana”. O motivo, segundo Gil Vicente, é o cuidado com a representação que o título pede. O diretor lembra que não é negro, assim como uma parte de sua equipe, além disso, um dos personagens principais é branco e a ópera mistura canto lírico e iorubá, violinos e atabaques.

“Há uma reivindicação da comunidade negra de se ver representada. A gente não queria fazer uma ‘ópera negra’ com música europeia, personagens brancos e equipe misturada. O ‘baiana’ traduz muito mais nossa realidade”, justifica Gil Vicente. “A ópera mostra esse Brasil de herança africana, do Recôncavo que vem com a cana de açúcar, do barão de Santo Amaro, um cara escravagista, reacionário e conservador da pior espécie”, cita. “Como a própria Djamila [Ribeiro] falou: é importante que todos falem sobre racismo”, reforça.

Por isso, esse é um dos principais temas da ópera, que também aborda o machismo através de sua protagonista, Lídia de Oxum, vivida pela cantora soprano Irma Ferreira. Na trama, Lídia mostra que está longe da figura feminina frágil que se envolve em um triângulo amoroso com o líder negro Tomás de Ogum (Miguel Nador) e o filho de um senhor de engenho, Lourenço de Aragão (Rafael Siano), que chega da Europa com ideias abolicionistas.

“Lídia não é só uma mulher, ela é uma líder. Ela sai do estereótipo que a mulher é amor e beleza. Mantemos a ideia da beleza de Oxum, sim, mas mostramos que não é só isso. A ideia é mostrar Lídia como uma mulher guerreira, uma mulher que vai à luta e que entre o amor e a comunidade, prefere a comunidade”, conta Irma, 28.

No texto dessa personagem é possível perceber outra mudança sutil feita pela direção. Em uma de suas falas, Lídia dizia que era “mulata”, “mas esse é um termo pejorativo que a gente resolveu deixar no passado”, explica Irma. “Ela agora diz sou ‘negra’. Mudamos de maneira sutil, sem deturpar a obra, mas tirando esse ranço”, explica. Irma Ferreira interpreta Lídia de Oxum (Foto: DIney Araújo/Divulgação) Realista Sem ser pessimista, mas sendo realista, a Ópera Lídia de Oxum não apresenta heróis, mas mostra personagens do século XIX extremamente contraditórios. Lourenço, por exemplo, abraça a causa abolicionista e mantém os privilégios do homem branco. Ao mesmo tempo em que a Abolição é celebrada, os personagens lembram que a igualdade só existe no papel.

“A obra de arte de uma forma geral e os clássicos – como Lídia de Oxum, me arrisco a dizer – sempre têm algo a nos ensinar sobre nosso momento atual. Sobre como a gente ainda permite que as coisas sejam como eram”, reflete Gil Vicente.“Inacreditável tudo o que a gente ainda vive hoje: o empoderamento da estupidez, da arrogância, do preconceito, da misoginia, do racismo”, reprova.Apesar da crítica, o diretor faz questão de lembrar que esse não é um espetáculo militante. “Estou montando uma ópera com personagens do século XIX. Agora, se isso vai repercutir e as pessoas vão fazer analogias, a culpa não é minha, mas da sociedade brasileira que não conseguiu evoluir em mais de 100 anos”, finaliza.

[[galeria]] ServiçoO quê: Ópera Lídia de Oxum, com direção de Gil Vicente Tavares e direção geral de Ildazio JúniorQuando: De amanhã a sábado, às 21hOnde: Teatro Castro Alves (Campo Grande)Ingresso: R$ 80 | R$ 40 (filas de A a Z) e R$ 50 | R$ 25 (Z7 a Z11)Vendas: Bilheteria do TCA, postos do SAC nos Shopping Barra e Shopping Bela Vista e no Ingresso Rápido (site e aplicativo)