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Anos de Chumbo chega às livrarias fazendo par com edição especial de 30 anos de Estorvo, primeiro romance do artista
Doris Miranda
Publicado em 26 de outubro de 2021 às 06:00
- Atualizado há um ano
Ter em mente a narrativa das canções, com aquelas imagens de cinema e ambientação detalhada, talvez dê uma pista para o fã de Chico Buarque, 77, engatar na leitura de Anos de Chumbo (Companhia das Letras | R$ 60 e R$ 30, e-book | 168 págs), o primeiro livro de histórias curtas na carreira do escritor. Sinta-se avisado, em certos momentos, o ritmo é estonteante, a sordidez dos personagens é mais do que atual e embrulha o estômago, num acordo óbvio com o título da publicação.
Mas, como nem tudo é chumbo, a candura do criador de personagens femininas marcantes está lá, viva, e comove. Combinados, os oito continhos de Chico compõem uma bela estreia que chega às livrarias fazendo par com a edição festiva de 30 anos de Estorvo, que traz textos de Roberto Schwarz, Sérgio Sant’Anna, Marisa Lajolo e Augusto Massi.
Uma jovem e a relação com o tio seboso. Um grande artista sabotado rumo a Paris. Um desatino familiar em plano sequência. Uma moradora de rua que vive de glamour e ETs. Um passeio por Copacabana numa outra era. As trapalhadas de um fã fervoroso de Clarice Lispector. A relação aberta de um casal. A guerra de uma família contra um inimigo traiçoeiro.
As histórias conduzem o leitor por uma ampla variedade de sensações, que se alternam entre o asco profundo provocado pela corrupção moral até as risadas inesperadas vindas do delírio da mente humana.
Em comum, o Rio de Janeiro e o panorama do Brasil atual, tão em chamas quanto a ditadura militar apresentada no último conto, o que dá título ao livro. Anos de Chumbo é narrado sob o ponto de vista de um menino, vítima de poliomelite, que adora brincar com os soldadinhos de sua guerra particular. Certo dia, entre conversas enviesadas que escuta sem querer, descobre que o único amigo de seu pai era, na verdade, seu superior no exército e a quem obedecia em atividades obscenas realizadas em salas escuras dos quartéis.
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A obscenidade está presente também no conto de abertura, Meu Tio, que apresenta uma jovem carioca prostituída pela família a um tio ricaço. Malandro velho, ele vive da adrenalina de esfregar dinheiro na cara das pessoas, do poder que exerce em comunidades e de voar pelas ruas da capital carioca com seu carrão. De vez em quando, leva a sobrinha para o motel e enche sua bolsa de notas ainda cheirando a novo. Narrado com uma carioquice inevitável, o conto tem uma descaração rodrigueana inusitada na obra literária de Chico Buarque.
A voz principal do trágico Os Primos de Campos é entregue a outro garoto, cujas lembranças acompanham as visitas dos primos que vinham do interior passar férias no Rio. Além das peladas na praia, das rixas de crianças, vemos o racismo se manifestar em milícias neo-nazistas, a força da mãe solteira, abandonada pelo marido, e o poder de persuasão das igrejas neopentencostais.
Da tragédia, vamos para a comédia nonsense de Cida, história de uma pedinte que anda, chiquérrima, pelas ruas do Leblon, lembrando talvez um passado de glória. Um horror, não fosse o extraterrestre que ela garante ser seu namorado, disfarçado de peão de obra. O riso aparece frouxo também em O Passaporte, comédia de erros em que um artista consagrado de esquerda tem seu passaporte depredado por um hater, ambos no aeroporto, a caminho de Paris.
A lembrança do Rio de outra era aparece no poético Copacabana, narrado por um homem cheio de reminiscências da época em que foi o jovem cicerone de Pablo Neruda pela vida noturna do bairro carioca, onde Ava Gardner paquerava taxistas livremente, sem ligar se o marido, Frank Sinatra, ia se incomodar.
Da beleza para a violência paranoica de O Sítio, local onde um casal faz um pacto de amor livre, mas o ciúme dele indica a constatação de que não estamos desatados das convenções. O amor obsessivo também dá o tom de Para Clarice Lispector, Com Candura ao acompanhar as trapalhadas que um jovem poeta comete para ter contato com sua musa à epoca do lançamento de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, cujo tema é também o amor platônico.