Problema que não é de hoje: entenda motivos para filas no ferryboat

Desde 1972, quando houve a primeira viagem, serviço enfrenta críticas

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 10 de fevereiro de 2019 às 05:14

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO

Ao sair de casa, a advogada Aline Glória, 48 anos, já se preparou mentalmente. Chegar à Barreira do Jacuruna, em Jaguaribe, no Centro-Norte do estado, não seria fácil. Não pelas condições da estrada, mas porque, no meio do caminho, tinha o ferry. Ou melhor: “a bagunça do ferry de sempre”, nas palavras dela. Primeira na fila de prioridade no Terminal do Ferryboat em São Joaquim, ao lado do marido, o professor aposentado Renivaldo Glória, 64, esperou por duas horas. 

Encostados na cerca ao lado dos guichês, os dois esperavam pelo momento em que conseguiriam comprar a entrada. “Sempre que venho, já sei que vou passar por tudo isso. Meu esposo prefere ter menos tempo dirigindo na estrada, por segurança, mas, vindo por aqui, sempre tem estresse”, contou.  Renivaldo e Aline: passageiros resilientes (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) O problema é que ‘a bagunça do ferry’ realmente não é uma coisa que aconteceu apenas naquela sexta-feira, final de janeiro. Não é nem só uma situação recorrente em feriados, nem do Verão. Desde 1972, quando houve a primeira viagem, o serviço enfrenta críticas. Passa gestão, sai gestão, entra concessionária, muda concessionária. Tudo muda – menos os problemas. “O serviço nunca prestou. Conheci em 1973 e sempre foi muito ruim. Melhorou algumas coisinhas. Um restaurante que ficou um pouquinho mais limpo, por exemplo, mas sempre foi um serviço de baixa qualidade para a demanda. No inverno, até atende razoavelmente, mas, no Verão, atende muito mal”, lembra o pesquisador e jornalista Nelson Cadena. No passado, os perrengues que os passageiros enfrentavam na travessia pelo sistema também ganhou destaque na imprensa baiana. Em 1988, por exemplo, os leitores do CORREIO leram que “voltar da ilha foi uma verdadeira maratona”. Em 1990, o jornal mostrou o “sufoco na travessia para ilha de ferry-boat”.  Capas do CORREIO: histórico de problemas (Foto: Reprodução) Em 2004, um dos momentos mais difíceis foi quando o ferry Maria Bethânia quebrou. Em 2012, um dos anos mais animados: com 590 pessoas, o Anna Nery ficou à deriva e precisou ser resgatado pelo Ivete Sangalo. 

Em 2013, o estado das embarcações – inclusive o Monte Serrat, já na Marina de Aratu – apareceu na capa. Em 2014, o ferry Pinheiro sofreu uma pane e precisou ser rebocado no meio do mar, com 427 passageiros a bordo. Ainda naquele ano, o CORREIO mostrou a sede da empresa em que as duas embarcações mais recentes – o Dorival Caymmi e o Zumbi dos Palmares – foram compradas: ficava em um salão de beleza, em Portugal. 

Contrato Mas por que tanto problema? Hoje, o sistema conta com sete embarcações: Dorival Caymmi, Zumbi dos Palmares, Rio Paraguaçu, Maria Bethânia, Pinheiro, Anna Nery e Ivete Sangalo. Mesmo assim, os usuários têm sofrido com filas. 

Leia também: Tá na fila do Ferry? Veja quais são seus direitos

O tamanho delas, inclusive, virou em inquérito instaurado pelo Ministério Público do Estado (MP-BA), em 2018. O procedimento é comandado pelo promotor Carlos Robson Oliveira Leão. Procurado pelo CORREIO, porém, o órgão informou que o promotor está de férias. 

Entre os especialistas da área, há diferentes respostas. Para o professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Paulo Ormindo, conselheiro do Instituto dos Arquitetos da Bahia (IAB), um dos problemas é justamente a forma de exploração do ferryboat: pelo contrato de concessão, os barcos são do estado, enquanto a empresa – a Internacional Travessias – é responsável pela operação. “Você contrata uma empresa, ela pega o ferryboat e transforma num almoxarifado, porque não tem manutenção. Você tem frotas de avião voando 30, 40 anos, e um ferry na Bahia não dura 10 anos”, critica. Para ele, é “incrível” a falta de manutenção e gestão do sistema. Só para começar, o terminal em Bom Depacho, na avaliação do professor, deveria contar com um grande terminal integrado para ônibus e transporte terrestre. “Esse modelo não é de agora. É muito antigo esse emprega, renova, troca. Ficou sempre essa loucura e você não tem outra opção, a não ser lanchas precaríssimas indo para Mar Grande”, diz, referindo-se às linhas que saem do Porto de Salvador - serviço que registrou em agosto de 2017, o naufrágio da lancha Cavalo Marinho I com 19 mortos.

Planejamento Sem contar que, desde o início, o sistema do ferryboat baiano não foi projetado para altas capacidades, como ocorre na Ásia, na Austrália e na região do Mediterrâneo, segundo o urbanista e conselheiro do IAB Carl Von Hauenschild. Em um dia comum, o número de viagens vai de 36 a 38 por dia, mas, em em feriados prolongados, o total chega perto de 70 viagens em um único dia, de acordo com a Internacional Travessias. 

No fundo, o conselheiro do IAB acredita que isso se deve à falta de planejamento com investimentos contínuos. “O problema é totalmente operacional. Você tem que fazer bons investimentos em embarcações de boa velocidade de transporte e manter essa estrutura. O que se faz na Bahia? Uma terceirização da estrutura de operação, em que as embarcações são do estado e não da operadora. Um sistema desses não vai funcionar bem”, analisa Von Hauenschild. Para o urbanista, há, ainda, uma relação entre as filas e o tempo de espera com a demanda pela ponte Salvador-Itaparica. A conexão seria a seguinte: se a operação não funciona, os passageiros reclamam e a ponte será aprovada pela opinião pública, uma vez que o investimento pretendido fica na casa dos R$ 7 bilhões. 

“A gente não investiu numa otimização da ponte em termos de qualidade urbana em Salvador e qualidade ambiental em Itaparica. O pessoal que planejou isso pensou no desenvolvimento industrial do mercado imobiliário, mas não faz dela um vetor de desenvolvimento econômico consistente”, critica.  A fila de carros chega a durar horas, na alta estação (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Ao CORREIO, a Internacional Travessias informou que opera uma viagem a cada uma hora, em ambos os terminais, de acordo com o contrato. Quando há maior demanda, se houver embarcações disponíveis, é possível programar saídas extras, com intervalos a cada 30 minutos. Nesses períodos, são incluídas viagens durante a madrugada para atender o fluxo. 

A empresa reitera que não existem atrasos nas viagens em si. "O que existe é um limite de capacidade de lotação da embarcação, que precisa ser respeitado para assegurar que a viagem seja segura", apontam. 

De acordo com a Internacional Travessias, a cada ano, desde 2014, o número de passageiros aumenta. "Neste Verão, até o presente momento, o número de transportados tem se mostrado semelhante ao realizado no último Verão", informou a empresa.

O sistema atende, em média, 15 mil pessoas por dia, além de dois mil veículos diariamente. Em períodos de maior demanda, o público chega a mais de 45 mil pessoas e mais de 6 mil veículos, por dia.

Ainda segundo a empresa, todos os ferries possuem seus certificados regulares. De acordo com a concessionária, a manutenção e preservação das embarcações são procedimentos indispensáveis, seguidos com rigor pela gestão.

Em um dia comum, na baixa estação, se todos os veículos fossem do tipo 'auto pequeno' (carros de passeio, que têm a menor tarifa - R$ 45), o faturamento bruto da Internacional Travessias chegaria aos R$ 3,1 milhões por dia. Isso se o cálculo considerar a tarifa de pedestres R$ 5 e que cerca de 10% do público é de passageiros isentos. Além disso, a conta não considera gastos com manutenção e com pagamento de pessoal, por exemplo. Atualmente, a concessionária conta com 454 funcionários ativos. 

Desde 2014, foram investidos entre R$ 2,5 a R$ 5 milhões por cada ferry em docagem (reforma completa, feita obrigatoriamente conforme determinado pela classificadora Registro Brasileiro de Navios e Aeronaves e Capitania dos Portos). Cada embarcação passa por docagem, a cada período de 2 a 3 anos.

Além da docagem, são feitas manutenções regulares e o custo depende da necessidade de cada embarcação. Muitas vezes os equipamentos necessários ao reparo são encomendados até mesmo fora da cidade e por vezes são importados.  "A respeito da demanda extra, acreditamos que o sistema FerryBoat, por ser um importante equipamento que liga a capital a cidades do interior, levando aos condutores de veículos a diminuição do tempo de viagem, reduzindo o desgaste do veículo e oferecendo menor exposição nas estradas, atrai grande demanda. E, considerando que houve, nos últimos anos, uma maior oferta de embarcações, é natural que haja também um aumento da procura pelo serviço", completam. 

Alugar ferries seria uma solução, diz especialista em gestão portuária Para gerenciar serviços de transporte como o ferryboat, é possível ter base nos fundamentos de teoria de filas, de acordo com o professor Ademar Nascimento, do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Industrial da Universidade Federal da Bahia (Ufba). 

Segundo essa teoria, o equilíbrio entre taxas de chegadas e de serviço é fundamental para manter o sistema operativo sobre controle. “Sistemas de servidor único (gavetas de atracamento) em que a taxa de chegadas de embarcações é maior que a taxa de serviço (tempo de atracamento e embarque/desembarque) invariavelmente implicam em longas filas e descontrole operacional”, diz. 

Esse é provavelmente um dos principais problemas nesse serviço de travessia. A solução, segundo ele, no cenário atual, seria aumentar a capacidade. Ou seja: oferecer um número maior de ferries e atracadouros. “No estado atual desse sistema, os custos do descontrole operacional são unilateralmente transferidos para o tempo de espera dos usuários, já que os custos fixos da empresa prestadora do serviço certamente são melhor remunerados pela elevada demanda”. Além de investir em novas embarcações, seria preciso criar novas gavetas de chegada. “Às vezes, você vê o governo se defendendo na imprensa, mas você pode alugar embarcações em determinados períodos, porque, a população não quer saber se investiu ou deixou de investir. Ela não quer fila”, pondera o professor, que é especialista em gestão portuária. 

Para ele, além dessa saída, outra solução seria a própria ponte ligando Salvador a Itaparica. Essa ponte, no entanto, deve ser um serviço complementar, assim como o sistema de barcas funciona em conjunto com a ponte Rio-Niterói, no Rio de Janeiro. 

A Internacional Travessias informou que o contrato de concessão não prevê o aluguel de embarcações na frota existente. A Secretaria de Infraestrutura de Transporte, Energia e Comunicação do Estado (Seinfra) afirmou que, no Brasil, não existem empresas disponíveis para alugar ferries. "Se houvesse, ela precisaria estar de acordo com a legislação fiscal brasileira, assim como as normas da Marinha", completou o órgão.

Gavetas reformadas O governo do ​estado informou que os terminais do sistema em São Joaquim e Bom Despacho estão passando por obras - a reforma das gavetas nos dois terminais está em andamento e mais de 86% do serviço já foi executado.

Segundo o governo estadual, a reforma está sendo feita em duas gavetas (uma no Terminal de São Joaquim e uma no Terminal de Bom Despacho), para que se adaptem às embarcações mais novas (Zumbi dos Palmares e Dorival Caymmi), permitindo que os ferries encaixem em qualquer unidade. Os serviços estão ampliando as gavetas de 18 metros de largura, aproximadamente, para 24 metros de largura. As intervenções vão tornar o sistema operacional mais eficiente, e trará melhorias nas condições de acessibilidade e qualidade dos serviços ofertados. A previsão para conclusão é neste mês de fevereiro. O investimento é de R$ 9 milhões.

Além disso, está em fase inicial os serviços de dragagem do terminal de Bom Despacho. O objetivo é permitir que as embarcações possam realizar a operação de atracação no Terminal Hidroviário de Bom Despacho com ainda mais segurança evitando que possam encalhar durante a manobra. "O maior benefício será a agilidade na operação do sistema, isto reflete em menos filas e transtornos para os passageiros", completam. O valor investido é de R$ 984 mil.

A Secretaria de Infraestrutura de Transporte, Energia e Comunicação do Estado (Seinfra) continua com em negociação para adquirir uma nova embarcação, através da concessionária existente, no mercado internacional. "Atualmente, está finalizando os estudos para contratação do novo equipamento com moderna tecnologia e capacidade semelhante às embarcações Dorival Caymmi e Zumbi dos Palmares".

Além das intervenções promovidas pelo governo do estado, há obras que vêm sendo conduzidas pela concessionária Internacional Travessias, como melhorias estruturais nos terminais. Através da assessoria, a empresa informou que as obras incluem a instalação de guichês especiais para os pedestres com direito a atendimento de prioridade no terminal de Itaparica; renovação e ampliação do salão de embarque de passageiros, em São Joaquim, com melhor ventilação e dobrando a quantidade de assentos no local; reforma do salão de passageiros no terminal Bom Despacho e dos banheiros de ambos os terminais. 

Estão previstas, ainda, ampliação e reforma do estacionamento para clientes em São Joaquim. O sistema de bilhetagem está em fase final de renovação. As mudanças atuais vão contar com instalação de novas catracas inteligentes, com leitura óptica QR-Code, catracas inteligentes e sistema para prevenção e controle de fraude.

O início do sistema ferryboat  1970 – Em 8 de dezembro, o então governador Luiz Viana Filho inaugura o Sistema Ferryboat. Naquela época, porém, o sistema se resumia às rodovias, aos terminais e à Ponte do Funil e estava parcialmente concluído. 

Julho de 1972 – Embora tivesse sido inaugurado dois anos antes, o primeiro ferry só chegou à Baía de Todos os Santos só no dia 4 de julho de 1972. Na época, o Agenor Gordilho, que até hoje faz parte da travessia, foi o primeiro a chegar, depois de sofrer um atraso por manutenção no Porto de Ilhéus.  

Dezembro de 1972 - Quando o Agenor Gordilho chegou a Salvador, não pôde viajar de imediato, porque o terminal de São Joaquim precisava de obras de conservação. A viagem inaugural do ferry aconteceu no dia 5 de dezembro de 1972, com a presença do então governador Antônio Carlos Magalhães. O Agenor Gordilho saiu de Salvador e chegou a Bom Despacho 50 minutos depois. 

Embarcações em operação atualmente:Nome Fabricação Capacidade/Veículos Cap./Passageiros Dorival Caymmi 2010 135 988 Ivete Sangalo 2008 55 653 Maria Bethânia 1981 45 800 Pinheiro 1974 52 800 Rio Paraguaçu 1984 43 800 Zumbi dos Palmares 2009 150 1098 Anna Nery 2010 55 653