Provocativa e atual, peça do Bando de Teatro Olodum faz 20 anos

Emblemática, a peça Cabaré da Rrrrraça ganha temporada comemorativa a partir deste sábado (12/8), no Teatro Vila Velha

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  • Laura Fernades

Publicado em 7 de agosto de 2017 às 06:05

- Atualizado há um ano

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. por Marcio Meirelles/Divulgação

Dia 8 de agosto de 1997: “O que é ser negro?”, questiona um dos personagens do espetáculo Cabaré da Rrrrraça (assim mesmo, com cinco ‘rs’, como se fosse um rugido). “Ser negro é luta, viu? É ver que até hoje as pessoas batem na minha porta e perguntam pela dona da casa”, responde hoje a atriz Vadinéia Soriano, 47 anos, que integra a peça do Bando de Teatro Olodum desde a estreia, que completa 20 anos nesta terça (8/8).

“Ser negro é você pegar um táxi, Uber, e todos os dias ouvir dos motoristas que te deixam na porta de casa querendo ser simpáticos: ‘bom trabalho’”, completa o coreógrafo Zebrinha, 62. Diretor artístico do Balé Folclórico da Bahia, ele assina desde 1997 as coreografias de Cabaré da Rrrrraça, espetáculo emblemático do Bando que ganha temporada comemorativa a partir de sábado (12/8), no Teatro Vila Velha.

Depois de 20 anos, a pergunta “o que é ser negro?” continua na essência da peça que tem direção de Marcio Meirelles e texto assinado por ele com os atores do Bando. “Os avanços são muitos, em 20 anos, mas parece que a situação só piora. Moro em um bairro de classe média e toda vez que desço para ir no mercado é a mesma coisa. Se vem alguém no passeio, homem ou mulher, prefere ir para o meio da rua a se ‘arriscar’ a cruzar comigo. Só a gente que enfrenta no dia a dia é que sabe”, desabafa o ator Jorge Washington, 52. Discussões sobre a conscientização e o empoderamento da população negra são centrais em Cabaré da Rrrrraça (Foto: Márcio Lima/Divulgação) Jorge também integra, desde o início, o elenco formado por 14 atores que se encontram mais uma vez no palco do Vila Velha para debater o racismo. Eles compartilham com a plateia, cheios de humor, crítica e personagens intencionalmente alienados, casos de preconceito que enfrentaram.

“Cabaré falava do racismo há 20 anos... Isso é muito triste. Que pena que a gente ainda tem que falar sobre isso. Claro que a gente nunca imaginou que a peça ia viver 20 anos e ia continuar tão atual. Então é um misto de alegria e tristeza”, pondera a atriz Cássia Valle, 46, na peça desde 1997.

Supernegões Visto por mais de 40 mil pessoas ao longo desses 20 anos, com mais de 280 apresentações no Brasil, em Portugal e Angola, Cabaré é o maior sucesso do Bando nos palcos. A peça, que já contou com artistas como Lázaro Ramos e Éricos Brás no elenco, integra o repertório do grupo ao lado de cerca de 25 espetáculos como Sonho de uma Noite de Verão (2006), Áfricas (2007) e Ó Paí, Ó! (1992), que virou filme e série de tevê.

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Quem já conhece vai poder rever, mas quem ainda não viu terá até o dia 27 de agosto para conhecer a peça. Nessa temporada, assim como nas anteriores, artistas convidados vão interpretar as canções do espetáculo, que tem direção musical de Jarbas Bittencourt. Na estreia, participam Márcia Short, Larissa Luz, Nara Couto e Ana Mametto, além da banda do Ilê Aiyê e dos cantores Dão, Mr. Armeng e MC Xarope.

Com sutis alterações no texto e mudanças no figurino (com o apoio de designers de moda baianos), diferentes tipos são apresentados na peça. Entre eles, Wensley de Jesus (Sérgio  Laurentino), o estudante de mestrado militante, e Luciano Patrocinado (Renan Motta), o cara boa pinta que só anda com roupa de marca para “pegar gringa branca”.

Outros personagens que se destacam são Jaqueline (Valdinéia Soriano), a pagodeira que quer estar bem na fita, sem pensar na questão racial; Marilda Refly (Cássia Valle), a dona de um salão de beleza que representa as empresárias, mas sem deixar de enfrentar o racismo; e Taíde (Jorge Washington), o modelo que vive no mundo do glamour com um discurso alienado.

“Amo fazer o espetáculo”, se declara Jorge, que participa de uma das cenas mais polêmicas de Cabaré. Na coreografia, os homens correm nus pelo palco para questionar o mito do “negro bom de cama”. “A cena é muito polêmica. A plateia tem um desconforto, mas é como se fosse uma brincadeira de criança. Não tem nenhuma sexualidade. A ideia dos ‘supernegões’ é debater o mito da superioridade sexual do homem negro”, reforça. Diretor de Cabaré da Rrrrraça, Marcio Meirelles assina o texto junto com o Bando de Teatro Olodum (Foto: Betto Jr./CORREIO) Vitalidade A criação de Cabaré da Rrrrraça teve dois principais motivos, lembra Marcio Meirelles: foi lançada a revista Raça e inaugurado o Cabaré dos Novos, espaço do Vila Velha que precisava de um espetáculo no seu formato. Ao pensar na peça e descobrir que  apenas 1% da plateia baiana era ocupada por negros, Marcio teve a ideia de implantar a meia-entrada para negros, o que causou um burburinho na época.

“Era uma forma de incentivar os negros a irem ao teatro, uma forma de provocar o público a se assumir negro”, explica o diretor. Segundo ele, a força de Cabaré, que se mantém firme mesmo depois de 20 anos sem patrocínio, se deve à sua forma e conteúdo. “Criamos um debate bem humorado sobre um assunto muito duro, porque teatro pega pela emoção para entrar na razão e desestabilizar verdades consolidadas por um grupo social ou por uma época”, justifica.

Marcio destaca, ainda, que a peça continua atual. “O modo como o Brasil e o mundo têm reagido a elas é que tem mudado”, acredita. “O racismo é imutável... Continua atuando porque é um dos sintomas do capitalismo, da sociedade frenética de consumo e competição”, critica. Ao mesmo tempo, Marcio ressalta que Cabaré “dá conta do que uma peça de teatro pode dar: mover, comover, mexer nas consciências, fazer refletir”.

O jornalista Marcos Uzel, 49, que sempre acompanhou o Bando de perto e escreveu o livro Guerreiras do Cabaré (Edufba | 2012), sobre as figuras femininas da peça, destaca que Cabaré da Rrrrraça é "um marco na história do teatro baiano e um divisor de águas na trajetória do Bando". "Seu apelo popular é tão incrível que após a estreia, em 1997, a companhia negra conseguiu reverter consideravelmente o percentual de espectadores negros em sua plateia, antes em torno de 2% e, depois do Cabaré, superior a 60%. É uma peça afirmativa com posicionamentos firmes e necessários sobre questões que vão direto ao coração de seu público alvo", elogia.

Serviço: Peça: Cabaré da Rrrrraça, com o Bando de Teatro Olodum Quando: Sextas e sábados, às 20h, e domingos, às 19h. De 12 a 27 de agosto Onde: Teatro Vila Velha (Passeio Público, Campo Grande | 3083-4600) Ingresso: R$ 30 | R$ 15. Vendas: no local. Informações: www.teatrovilavelha.com.br