Quando eu percebi que devia um pedido de desculpas a Pedrinho

Senta que lá vem...

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  • Daniel Silveira

Publicado em 19 de junho de 2018 às 13:01

- Atualizado há um ano

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Quando eu era criança, não chego a lembrar quantos anos eu tinha, mas lembro quase que perfeitamente de uma história contada por minha mãe.

Um homem, cujo nome não sei, foi encontrado morto em casa. Tinha cometido suicídio, diziam as pessoas. Minha mãe conversava com uma amiga enquanto eu, que adorava escutar as conversas dos adultos, prestava atenção no papo: “- Ele disse que, se um dia sentisse o menor desejo por outro homem se mataria. Deve ter sido isso.”

Naquela hora eu entendi que era errado ter atração por outro homem. Eu já sabia que não era algo muito aceitável socialmente. A não ser que você fosse Pedrinho, o cabeleireiro de minha mãe, ou Renê, o outro cabeleireiro. Poderia ser Zé, o faxineiro sem nome da escola onde eu estudava, que era gay, mas ninguém, nem ele, comentava sobre. Eles tinham seus lugares na sociedade, um lugar ao qual eu não deveria pertencer.

Uma vez minha mãe me levou em Pedrinho. Ela tinha ido cortar o cabelo num sábado de manhã. Ele me ofereceu uma bonequinha para brincar enquanto esperava ela terminar. Eu, machinho (risos), recusei. O pior veio em seguida. Ela sugeriu que eu cortasse o cabelo, mas eu não quis. Não poderia deixar que ele tocasse em mim. Eu não chorei, eu dei um escândalo no salão para não deixar ele cortar meu cabelo. Lembro desse dia com tristeza. Imagino como Pedrinho deve ter se sentido mal por isso. Ele não tinha culpa. Nem eu.

Quando era um jovem cristão conservador da Renovação Carismática Católica eu estava em uma fase de negação de minha sexualidade. Na verdade, durante muito tempo eu achei que não tinha desejo por homens. Cheguei a acreditar que eu tinha sublimado minha sexualidade (como se isso fosse possível). Eu estava, obviamente, enganado, mas só fui entender isso muito tempo depois de beijar um homem.

Entre os muitos amigos que tive, dois são particularmente importantes. O primeiro deles foi um por quem eu descobri estar apaixonado (muito tempo depois). Tínhamos uma relação tão carinhosa, dedicada, sofrida, amorosa. Não podia ser outra coisa senão paixão. Nunca existiu relação física nem beijo nem sexo nem sequer cumplicidade assumida, apesar de (preferir) acreditar que ele sentia o mesmo.

O outro, o galã do grupo, de quem decidi ser amigo porque ele se interessava por rock, assim como eu. Em um dado momento de descontração ele disse: “eu não gostaria de ter amigos gays pois fico pensando que eles dariam em cima de mim”. Claro, pois todo gay quer mesmo é pegar um homem hetero. Em outro momento de nossa belíssima amizade eu fazia cafuné nele, ele levantou de repente. Obviamente, eu não podia tocar nele. Mas ele deixava outros amigos fazerem a mesma coisa. Eu não entendi direito naquele dia, mas sabia que eu era o problema.

Hoje em dia, olho para todas essas situações e fico até um pouco triste. É difícil ser uma criança LGBT, mais ainda quando a gente se convence de que não é porque é “feio” ser assim. Às vezes falta força. Mas muitas das vezes sobra esperança e fé. E é nisso que eu me seguro quando penso em seguir em frente.

A Pedrinho, gostaria de dizer que sinto muito se um dia te fiz pensar que você era menos gente por ser gay. Eu pensei isso de mim diversas vezes e não me fez nada bem. Ao meu amigo primeiro, gosto de quem você se tornou e sinto falta de sua amizade. Ao meu amigo segundo, sinto muito por você ter uma mente tão pequena na época. Poderíamos ter sido mais amigos.

Daniel Silveira é repórter do CORREIO.

Texto originalmente publicado no Medium.