Quando reabrir vale a pena? Entenda como outros países têm saído de confinamentos

Exemplos podem trazer lições para Salvador, que começa reabertura segunda-feira (5)

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  • Thais Borges

Publicado em 3 de abril de 2021 às 16:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Fotos: Arquivo CORREIO e Shutterstock

Uma mudança em pouco mais de um mês. Salvador e a Bahia assistiam a uma escalada de casos de covid-19, com seguidos alertas de que se tratava do pior momento da pandemia, quando  vieram as primeiras medidas de restrição, ainda no fim de fevereiro. Toque de recolher, ‘lockdown parcial’. Em poucos dias, todos os serviços não essenciais foram fechados e, desde então, não tinham voltado a reabrir, nem na capital, nem na Região Metropolitana (RMS). 

De lá para cá, o cenário é um tanto diferente. Os casos diminuíram e Salvador se prepara para sua reabertura a partir de segunda-feira (5). A queda, porém, ainda não se reflete no número de óbitos. Na última quarta-feira (31), inclusive, a Bahia registrou o maior número de mortes desde o início da pandemia. Dos 160 óbitos, 71 aconteceram em Salvador. 

Normalmente é assim mesmo: o número de mortes é sempre o último estágio, seja da subida, seja da redução.“A gente previa que isso ia ser uma luta de longo prazo”, diz o epidemiologista Eduardo Martins Netto, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. "Essas medidas (que foram tomadas) são medidas clássicas de controle epidemiológico, extremamente eficazes. Mas precisa da colaboração da população, de uma forma geral”, pondera. Pelo ritmo atual, a queda no número de mortes começaria a aparecer na próxima semana. “Obviamente, as medidas que um gestor municipal impõe à população, como o fechamento do comércio, são fundamentais. Nos parece que tem mais uma semana de dados ainda para o número de óbitos, porque ainda tem aqueles que estão sendo computados”, explica. 

Para o prefeito de Salvador, Bruno Reis, a tendência é de que as notificações continuem caindo - especialmente porque, até este domingo (4), ainda haverá restrições na cidade. No entanto, ele garante que, se acontecer qualquer mudança na curva epidemiológica e os casos voltarem a aumentar, tudo será fechado novamente. “Se a gente não tomasse essa decisão, implicaria no fechamento de milhares de atividades, gerando mais desemprego em nossa cidade. A situação é diferente do ano passado, quando o comércio estava aquecido e teve que parar. Agora a maioria dos empresários estava em crise, pedalando, e até então não veio nenhuma ajuda do governo federal”, enfatizou, durante entrevista coletiva na última quinta-feira (1º). A reabertura na capital será feita de forma escalonada, assim como na maioria dos países que têm saído de confinamentos contra a covid-19. Ainda é uma programação com restrições de horários, dias de funcionamento e até do que pode abrir. 

Ou seja: por enquanto, Salvador está bem longe de poder fazer como países como Austrália e a Nova Zelândia, que já conseguem até liberar shows e festivais de música para 20 mil pessoas. Contudo, é possível aprender muito com a reabertura em outros locais - mesmo quando o modelo de confinamento é totalmente diferente do nosso. 

Confinamento total  Quando se fala em lockdown e reabertura, o Reino Unido é um exemplo emblemático - especialmente por já ter passado por diferentes momentos da pandemia. Lá, houve tanto saídas precipitadas - que levaram a um aumento posterior de casos - quanto um fim de lockdown feito de forma quase cirúrgica. 

Esse último cenário é uma boa descrição do momento atual, já que a transmissão diminuiu tanto que, nesta semana, Londres teve o primeiro dia sem registrar nenhum óbito por covid-19. De forma geral, todos os países do Reino Unido começam agora a sair de um confinamento que teve início no dia 4 de janeiro. 

Mas não foi tão simples assim. Na avaliação de especialistas, as autoridades do Reino Unido meteram os pés pelas mãos em muitos momentos, especialmente no começo, quando se recusaram a adotar medidas de distanciamento social. Na época, não deu certo e o confinamento foi inevitável. O primeiro lockdown durou quase quatro meses e só acabou em julho. 

Entre o confinamento de 2020 e o que foi decretado em 2021, houve mais uma alta de casos, inclusive com o surgimento de uma nova variante do coronavírus, mais transmissível e mais mortal do que as que circulavam até então. “Depois de quase 90 dias, eles vão voltar a abrir de forma escalonada. Deixaram chegar num nível tão absurdo por tentar não fechar que acabaram tendo que passar mais tempo fechados. Se tivessem fechado antes, talvez passassem só 14 ou 15 dias”, explica o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise Covid-19. Esse período de duas semanas equivale ao ciclo de transmissão do vírus. Além disso, o Reino Unido fica em segundo lugar entre os países que mais vacinaram sua população. Tendo sido o primeiro a dar início à imunização, ainda em dezembro, hoje já são 45% de vacinados por lá. O índice só é melhor do que o de Israel, que imunizou mais de 60% da população. 

Sem controle Já o caso de Portugal costuma ser relacionado por alguns virologistas com a Bahia - especialmente pelo tamanho da população e pela forma como enfrentou a primeira onda da pandemia. Ao contrário de outros países da Europa, Portugal teve números menores de infectados no ano passado. Assim como na Bahia, não tinha acontecido nenhum colapso do sistema de saúde de lá. "A gente pode falar que Portugal teve um controle muito bom no primeiro momento, mas flexibilizou antes da hora. Por isso, o aumento no número de casos”, avalia o infectologista Matheus Todt, da S.O.S. Vida. De fato, tudo mudou por lá no começo deste ano, quando a situação portuguesa ficou totalmente "descontrolada", segundo as autoridades de saúde. O país chegou a ter 15 mil novos casos de covid-19 por dia. “Foi mais ou menos a mesma coisa do Reino Unido. Eles deixaram chegar num ponto absurdo na segunda onda, mas fizeram também um lockdown muito restrito, de mais de 60 dias”, diz Isaac Schrarstzhaupt, da Rede Análise Covid-19. 

Em 2020, inclusive, Portugal não tinha decretado confinamento total em nenhum momento. No entanto, com as medidas recentes, as infecções caíram a ponto de se tornarem 400 novas notificações diárias. “Eles não zeraram o número de casos, mas agora podem ter controle hospitalar. Há uma folga para o pessoal de saúde. Essas quedas servem também para dar um alívio aos profissionais de saúde”, analisa o cientista de dados. 

Lá, a reabertura começou no meio de março e só deve ser concluída no final de abril, depois de quatro fases. Lojas e restaurantes podem funcionar a partir de segunda-feira (5), mas ainda com restrições. Bares e restaurantes, por exemplo, só terão atendimento externo para, no máximo, grupos de quatro pessoas. 

Logo no começo Há, ainda, outro modelo: o adotado por países como Austrália e Nova Zelândia, já considerados alguns dos mais bem-sucedidos no combate à covid-19. Eles são apontados como tão seguros que, em 2021, foram capazes até de liberar a realização de eventos com pessoas sem máscara: em março, houve shows para mais de 20 mil pessoas.

Mas como eles conseguiram isso? O segredo é decretar medidas de restrição o mais rápido possível. Ao menor sinal de que havia registros de covid-19 em uma determinada região, aquela localidade tinha confinamento decretado. Na semana passada, Brisbane, na Austrália, tinha feito isso, em razão da descoberta de 10 casos de coronavírus na cidade. 

Os exemplos são muitos: no fim de fevereiro, quando começava o toque de recolher aqui e um lockdown parcial era anunciado, Auckland, a maior cidade da Nova Zelândia, fez a mesma coisa. Por sete dias, houve confinamento total, porque houve apenas um caso. "Quando começa a subir, eles já fecham. Desaceleram o contágio a ponto de às vezes nem gerar internação. Ficam fechados 14, 15 dias. A gente precisa ficar 40, 50, 60 dias fechado por causa da altura que deixam chegar", completa Isaac Schrarstzhaupt, da Rede Análise Covid-19. Não é liberação Para garantir que a reabertura em Salvador continue acontecendo, será preciso uma avaliação contínua, como explica a infectologista Adielma Nizarala, da Secretaria Municipal da Saúde. De acordo com ela, todos os atendimentos vêm caindo também nas unidades de saúde. Nos cinco gripários, que chegaram a ter mil pacientes por dia, a procura chegou à metade. "Vamos ter que continuar vigilantes. Infelizmente, todas as vezes que diminuirmos a pressão nos mecanismos de precaução, vamos ter aumento de casos. Por isso, é possível que a gente passe a conviver com flexibilizações e restrições. Mas as pessoas parecem não entender o que é uma flexibilização. Não é liberação", reforça. Ela acredita que o 'cenário ideal' seria de medidas de conscientização, sem a necessidade de obrigação de restrição de circulação. "Quando você depende de medidas altamente restritivas, afeta a área dos empregos e vai ver pessoas passando necessidade. Por isso, tem que conseguir esse equilíbrio e só sair quando for necessário. Barzinhos e restaurantes não são atividades de primeira necessidade do ser humano", defende. 

Para o epidemiologista Eduardo Martins Netto, ainda que existam diferentes realidades no interior da Bahia, de forma geral, o estado tem o cenário de Salvador. "Se voltar a subir, temos que analisar diariamente como os números estão se comportando, fechando os locais onde está havendo transmissão mais acelerada", defende. 

Uma das preocupações com um eventual aumento do número de casos tem a ver com o surgimento de novas cepas. Hoje, além da variante do Reino Unido, a Bahia já tem transmissão comunitária da cepa de Manaus, que também tem capacidade de infectar mais pessoas, além de ser considerada mais letal. Outras duas variantes de atenção, a da África do Sul e a da Califórnia (EUA), ainda não foram registradas aqui. 

"O que temos visto é o crescimento dessa massa de mutantes se espalhando pelo mundo e pelo Brasil. Grande parte desse aceleramento é pela mutação. Por isso, a gente está preocupado com o aumento de casos na Índia. Como eles têm muita gente, a pressão de mutação é maior", explica. 

Por isso também a importância da vacinação em massa em um tempo mais curto. No entanto, o infectologista Matheus Todt, da S.O.S. Vida, acredita que, enquanto pelo menos 50% da população não for vacinada, não deve haver impacto na queda do número de casos. A Bahia vacinou 11% de sua população. O Brasil, 9%.

Para ele, uma reabertura leva aos mesmos problemas da primeira onda. "A gente está em colapso e vai se manter por algum tempo. A gente não alcançou um patamar seguro na ocupação de leitos de alta complexidade, que seria de 70%, pelo menos", diz. Por isso, ele acredita que, em duas semanas, é possível que tudo precise ser fechado novamente. "A gente tem um panorama muito ruim e a única coisa que estava segurando, até o momento, era a restrição nos estados e municípios". 

Platô alto Coordenador da Rede Análise Covid-19, Isaac Schrarstzhaupt também vê riscos na volta dos serviços não essenciais. É como se a taxa de transmissão da covid-19 fosse um foguete subindo em direção ao espaço. Quando a taxa começa a diminuir, mas ainda é maior que 1, significa que o foguete está deixando de acelerar - mas continua subindo, ainda que em uma velocidade menor. "A gente vai chegar em um platô altíssimo de mais óbitos e muitos casos. Temos que continuar fazendo força para baixo, reduzindo a mobilidade até que o 'foguete' caia. Ou seja: que a taxa de crescimento seja abaixo de um", explica. Além disso, a mudança pode fazer com que as pessoas acreditem que o pior momento ficou para trás - o que não é necessariamente verdade. Qualquer indicador da covid-19 não reflete exatamente o contexto atual. Como há um atraso entre o contágio e as internações, a maior parte dos índices representam o passado. 

"Sem contar que a reabertura precipitada descredibiliza a ferramenta do lockdown. Existe muita pressão para reabrir. Se você vai lá e reabre antecipadamente, a doença volta e o pessoal fala 'olha aí, não funciona, é besteira'. Mas é porque foi mal feito", diferencia. 

Como estão os baianos que moram em alguns desses países que já saíram das restrições? O CORREIO conversou com uma baiana que mora na Austrália sobre como andam as coisas por lá. Confira o relato dela: Relato: 'A vida na Austrália parece um sonho e, ao mesmo tempo, uma prisão'

*Colaborou Vinícius Nascimento