Que Bonfim é esse? Festa reúne 2 milhões de pessoas e bate recorde

Veja como as pessoas curtiram os festejos

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  • Thais Borges

Publicado em 17 de janeiro de 2019 às 20:04

- Atualizado há um ano

. Crédito: Betto Jr/CORREIO

Se tem uma coisa que provavelmente ninguém vai discordar é que baiano gosta de andar. Toda festa popular tem que ter um percurso aqui, outro ali. E, nessa disputa dos passinhos, a Lavagem do Bonfim, que aconteceu justamente nessa quinta-feira (17), é, de longe, a campeã. E bota longe nisso: oito quilômetros não são para qualquer um, mas, mesmo assim, dois milhões de pessoas encararam esse desafio. 

Foi o maior público dos últimos anos, segundo o padre Edson Menezes, reitor da Basílica do Senhor do Bonfim. Tanta gente tem sentido: Salvador está cheia de turistas - deve receber 3,7 milhões neste verão - só em cruzeiros, são 133 mil visitantes, diz a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (Secult).

Nossa missão, em 2019, era entender que Bonfim é esse, que faz com que mais da metade da população da cidade se mobilize por ele. Por que essa festa é tão querida e tão cheia, mesmo depois de ter mudado tanto? Àquela altura, às 7h da manhã, sequer imaginávamos que esta edição bateria recorde de público entre a Conceição da Praia e a Colina Sagrada, de acordo com as estimativas dos organizadores. No ano passado, o cálculo foi de 1,2 milhão e já chamava atenção por ser bem ambicioso.

Talvez a resposta para o Bonfim atrair tanta gente seja mesmo o fato de ter mudado tanto. De uma lavagem que era, literalmente, uma limpeza da igreja no século XIX, feita pelas esposas dos homens integrantes da devoção do santo e por suas damas de companhia aos trios elétricos entre os anos 1980 e 1990, a festa já teve de tudo. Por um período, contou até com jegues decorados desfilando, mas essa prática foi extinta em 2013, quando a Justiça proibiu animais no cortejo de uma vez por todas. 

O motorista Raimundo Dias, 72, ficou orgulhoso de ajudar a segurar uma das pontas da bandeira branca de 100 metros costurada por um grupo de fiéis da Igreja do Bonfim.“Esse ano, a grande inovação foi a bandeira. Não ajudei a fazer, mas estou aqui carregando e planejo ir com ela até o fim”, disse.O adereço veio, segurado pelos devotos, sempre à frente do andor do santo, e pintado com frases relacionadas à paz. 

Dessa vez, ao contrário do ano passado, o andor não tinha fitinhas com pedidos dos fiéis. As únicas fitas – quatro apenas – eram pedidos de paz por Salvador, pela Bahia, pelo Brasil e pelo mundo. Para a igreja, esse foi o tom de toda a 'Lavagem de Corpo e Alma', como é chamada a caminhada que acontece há 12 anos. 

Até o final, quando o padre Edson Menezes, reitor da Basílica Santuário Senhor do Bonfim, concedeu a benção aos fiéis que tinham completado o trajeto, essa foi a mensagem. Durante sua fala, ele reforçou o posicionamento do Papa Francisco contra armas. "Queremos reafirmar que a paz não pode reduzir-se sobre as forças do medo. A paz é fruto de um projeto político que se baseia na responsabilidade mútua e na independência dos seres humanos. Paz não se faz com armas. A paz se consegue com entendimento ", disse o padre.Fé no peito Para os fiéis, a festa deste ano provou que, mesmo com 200 anos de história, o Bonfim ainda consegue surpreender. “É muito bom ter essa criatividade, sempre com inovação. O Bonfim é para quem tem fé. O resto vem depois, se você vem pela bebida, pelo encontro com pessoas”, completou Raimundo, o motorista que segurava a bandeira. 

Depois da conversa com ele, foi como se todos os fiéis com quem conversamos compartilhassem o mesmo pensamento. Isso porque a resposta das pessoas foi, quase sempre, a mesma. Ela podia ser resumida nessas duas letrinhas, estampadas nas camisetas de dezenas (centenas? milhares?) de fiéis: fé. É... A tal da estampa da Fé que parece um crucifixo escrito a mão caiu no gosto da galera não só no Réveillon, mas também na maior festa religiosa da Bahia.  Seu Roque comprou camisa especial para a festa (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Vimos umas 20, antes de percebermos que a tentativa de contagem era impossível. Foi já nesse estágio que surgiu o aposentado Roque de Castro, 77.  Ele vestia uma branca, no modelo regata, com as letras em preto – mas, pela festa, dava para se bater com gente usando amarela, verde, vermelha, azul com as letrinhas da fita do Bonfim e até com lantejoulas bordadas a mão. 

Seu Roque comprou a camisa em dezembro, mas esperou até esta quinta para usá-la. Queria estrear na lavagem. “Vi muita gente usando, mas quem tem fé é isso aí. Tem que usar mesmo”, disse ele, que foi da Liberdade à Conceição da Praia a pé. Depois, seguiu o percurso até a Colina Sagrada tranquilamente. Cansado?“Não, estou bem. Também, com a cervejinha aqui, a gente vai curtindo. Curto uma seresta, danço um pagode. Aproveito tudo, mas o importante é ir até lá”.Mas muita gente deve ter feito como Seu Roque porque, pelo menos na banquinha do ambulante Jackson dos Santos, 25, a tal da fé no crucifixo não fez muito sucesso.“As que mais estão saindo são a ‘Não aperte minha mente’ e o ‘Modo Fábio Assunção’ (em referência à música da banda La Fúria). É para o pessoal festeiro mesmo, que vai sair hoje e só volta na segunda”, brincou ele, que vendia as camisetas por R$ 20. Assim como as camisetas, os chapéus de palha com frases debochadas caíram no gosto dos participantes da lavagem. ‘Não aperte minha mente’ virou figurinha carimbada, ao lado de outras como ‘Ai, pai, para’ e ‘Quem me viu, mentiu’.  Jackson vendeu camisas no percurso (Foto: Thais Borges/CORREIO) O que vale é ir  Valia ir de toda forma, mas, para a professora Zuleide Leal, 57, a melhor maneira era coladinha com a bandeira. Na véspera da festa, ela viu a convocação dos irmãos da igreja via WhatsApp: chamavam apenas os homens para ajudar a carregar o adereço pelos oito quilômetros. Mesmo com a chamada sexista, não se fez de rogada. 

“Acho que pensaram que ia ser pesado, mas eu vim logo para cá e já vi várias mulheres carregando. Vou tentar ir até o final com ela também, mas sei que vai ser difícil porque muita gente quer, aí ficamos competindo”, disse, aos risos, ela, que segue na lavagem há 36 anos. Criou o hábito com o marido que, dessa vez, não pôde acompanhá-la. 

Ela própria quase não conseguiu ir, porque estava com dor no calcanhar. Há dois meses, descobriu um esporão, que é uma formação óssea que provoca inflamação. “Mas sei que, quando chegar lá na Colina, o Senhor do Bonfim vai ter me curado. Vou estar curada”, afirmou, quase personificando a palavra do dia. 

As amigas Marina Andrade, 44, Maria José Silva, 65, e Maria das Graças Santos, 56, até que gostavam da parte profana, mas concordaram que ninguém poderia interferir na programação sagrada. Quando nos encontramos, elas debatiam justamente o fato de algumas fanfarras estarem à frente do cortejo. Na avaliação delas, aquilo não deveria acontecer.“Sinto falta dos trios, mas o bom dessa mudança é que tem mais espaço para a gente andar”, disse Maria José.Naquele momento, ainda no Comércio, estavam admiradas com a quantidade de pessoas. Para aquele trecho, a sensação era de mais do que nos anos anteriores. Ou seja, mais uma prova de que o Bonfim estava crescendo. A hipótese que justificaria isso, para Marina, era inclusive a razão de ela estar ali. “Não sou muito de igreja, mas, no Bonfim, a gente tem que vir. É o dia de agradecer e de pedir”.  Mariflor alcançou o que pediu e paga promessa distribuindo fitas (Foto: Thais Borges/CORREIO) Promessas E se não falta fé, não tinha como deixar de encontrar pagadores de promessas. De um canto a outro, não faltava gente que queria agradecer ao Senhor do Bonfim. Gente como a dona de casa Mariflor da Mata, 62, que, este ano, cortou 2.270 fitinhas para distribuir gratuitamente ao longo do cortejo. “Não posso revelar qual foi a graça alcançada, mas estamos fazendo isso há três anos. No primeiro ano, trouxemos 500 e, a cada ano, aumentamos. Esse ano, temos cinco pessoas aqui para distribuir”, revelou. A vendedora Luciana Muniz, 42, foi, pelo terceiro ano, pagando uma promessa no lugar da mãe. Vestida de baiana, queria agradecer pelo fato de a matriarca, que sofre de problemas de circulação, não ter precisado amputar uma das pernas. A lavagem de 2019 foi especial: foi a última pagando a promessa. Para isso, se preparou ao longo de toda a semana. 

“Vou até a casa da minha mãe e ela que me prepara, porque não sou feita no santo. Ela, que é Ialorixá, pede para que eu possa me apresentar. Esse ano, eu chorei muito, porque é o último ano. É uma emoção e uma fé que não dá para descrever”, explicou. Para Luciana, é como se a festa profana nem existisse. A caminhada – e todas as experiências que vêm dela – é a própria festa. “A lavagem não é só do catolicismo. Ela é da fé”  Luciana Muniz paga promessa em nome da mãe (Foto: Thais borges/CORREIO) Sobrou para a cerveja Quem lembra do tempo em que o Bonfim era um Carnaval, com trio elétrico e tudo, sentiu logo a diferença. Antes de 9h, a ambulante Marivalda Carvalho, 36, só tinha vendido garrafinhas de água. Nem uma mísera latinha de cerveja tinha sido arrematada por alguém. Em outros tempos, essa conta seria invertida. “O pessoal bebia desde cedo e, por isso, a gente vendia mais. Com os trios, isso acontecia muito”. 

De frente para o Ministério da Fazenda, a ambulante Dinalva Chaves, 58, vivia o mesmo drama. O pessoal só ficava na água. A cerveja, lá pelas 9h30, ainda não tinha saído.“Em outros anos, nesse horário, a gente já estava na função, despachando. Parece que o povo ficou mais religioso, né? Porque tem um sol bonitão desse queimando a pele e o pessoal não quer se hidratar”, brincou ela, que chegou ali na noite de quarta-feira (16), para garantir seu lugar.  A falta de gente bebendo não tornou a lavagem sem graça. Em alguns pontos, como em frente ao Museu du Ritmo, e o Largo de Mares, carrinhos com autofalantes potentes brincavam de minitrios – esses, por sua vez, proibidos no cortejo desde 2014. Tinha para todos os gostos: o axé de Luiz Caldas, o 'Chame Gente', de Armandinho, Dodô e Osmar, e o forró de Elba Ramalho.  Lázaro e Natizoo curtiram os festejos (Foto: Thais Borges/CORREIO) O artesão Natizoo M., 63, e o vendedor de livros usados Lázaro Santos, 40, estavam no time que dos que resolveram fazer a própria festa. Saíram com uma caixa de som em cima de um carrinho e, por onde passavam, levavam samba de roda. “A gente gosta de trazer alegria para as pessoas”, disse Natizoo. 

O objetivo deles era fazer o percurso todo – da Conceição ao Bonfim – e voltar ao ponto de partida. “A gente vai no pé e volta por axé. Seguimos cedo até o Bonfim e depois voltamos já com as bênçãos”, disse Lázaro, que queria agradecer por ter conseguido uma licença para vender seus livros na Praça da Piedade.  Renata e Carolina se divertiram com a Lavagem do Bonfim (Foto: Thais Borges/CORREIO) As amigas Renata Freitas, 35, e Carolina Costa, 40, aproveitavam cada um desses minitrios improvisados. Quando chegavam em algum ponto do percurso que não era embalado por música, até estranhavam. “Eu estava aqui falando agora que tem que ter uma musiquinha para aguentar essa andada toda”, brincou Renata.