Quem acredita em demônios é o povo do navio

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 30 de outubro de 2019 às 09:56

- Atualizado há um ano

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Eu não sou candomblecista nem católica nem autorizada a falar em nome de qualquer religião, inclusive por não seguir nenhuma. Mas sou baiana da gema, do Recôncavo. Nascida e criada entre festas de Oxóssi, do Bonfim, de Iemanjá, de Nosso Senhor dos Navegantes e mais meio mundo de santos e orixás. Essa mistura tem uma origem dolorosa (vá estudar) e é, atualmente, bastante discutida (estude mais). Mas é inegável base da religiosidade baiana e da maioria das nossas festas populares. É por essa religiosidade que somos conhecidos. Deixando logo claro o meu "lugar de fala", aviso que sou apenas uma foliã irrecuperável e testemunha da fé viva do povo do meu estado. Dito isto, tenho todo o direito de me retar com quem vem impor suas crenças pro lado de cá. Espie: quem acredita em demônios é o povo do navio. Por aqui, ninguém tem menos moral do que esse tipo de sujeito, vou explicar.

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Primeiro que, se os católicos acreditam em demônio (o deles é no singular), não andam fazendo a publicidade do dito em todo lugar. Mesmo quando eu andava em missa, jamais vi alguém se tremendo e falando com voz estranha, dizendo estar incorporado por diabo nenhum. Há relatos, sabemos, e padres exorcistas. Mas o diabo da Igreja Católica, atualmente, não é exibicionista. O tema, felizmente, é tratado com cautela e certo sigilo, como deve ser, inclusive de acordo com leis básicas da publicidade. Quanto mais se fala de alguém, mais fama a pessoa ganha, todos sabem. De modos que, pela conduta dos católicos, o demônio sempre foi mantido em certo anonimato. Celebrados, falados e refalados são Jesus, Maria, José e um bocado de outros santos famosos por milagres e feitos do bem.

No candomblé nem demônio tem. Aos ignorantes, serve a associação entre Exu e Satanás, mas isso é pura má vontade e preguiça de estudar. Diversas representações de Exu, Pombagiras e afins estão, sim, nas religiões de matriz africana. E fazem o quê? Para os que crêem, abrem caminhos, trazem amor e coisas assim. Tem quem faz trabalho pro mal? Tem. Assim como tem quem reza pra lascar com a vida dos outros ou "ora a Deus" pra coisas péssimas, conforme qualquer um pode confirmar, olhando ao redor. Funciona? Não faço ideia, mas se ebó funcionar, reza, oração e promessa funcionam também e tá tudo igual. Pro bem e pro mal que no plano encantado não tem hierarquia, creio eu. 

Cada um escolhe sua religião, se quiser, mas eu não vou mentir: fui conhecer gente que acredita em demônio mesmo, de com força, a ponto de não tirar ele da boca, quando apareceram na minha frente os primeiros "ultra religiosos" da nova geração. Uma questão comportamental, uma postura nova que eu, que estudei em escola protestante, inclusive, nunca tinha visto na vida. Comecei a ouvir "tá amarrado" um número tão grande de vezes que quis saber o que era que tanto amarravam, batendo o pé no chão. Era ele. O Demônio, gente, que antes ficava lá na dele e nunca entrou em minha casa. O "inimigo", como também gostam de falar a cada tentação, infortúnio, problema normal da vida. Vejam que passei a minha infância numa família católica e nunca soube que demônio fazia faltar água nem marido trair, por exemplo. Muito menos que era ele - e não um problema psiquiátrico qualquer - que deixava pessoas transtornadas. 

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Tudo bem acreditar, pensar em Satanás todo dia, cada um faz como quer, não tenho nada com isso. Mas não venha pra cá não, com sua agonia. Porque aqui também tem esse pessoal como o do navio que acredita demais em demônio, mas não somos conhecidos por isso, não é essa a tradição. Pelo menos por enquanto, aqui só tem um diabo (bem administrado pela Igreja Católica) e já tá de bom tamanho. O resto é tudo santo e orixá, sob as bênçãos de Oxalá e do Senhor do Bonfim, com todos os caminhos abertos por lindos Exus e Pombagiras. Portanto, povo do navio, saiba: a gente respeita sua crença no coisa ruim, mas se saia porque aqui "inimigo" não se cria.