Rapsódia de sangue, vergonha e destruição: o que já aconteceu na invasão à Ucrânia

Entenda os motivos do conflito, as reações no mundo e como fica o Brasil

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  • Da Redação

Publicado em 26 de fevereiro de 2022 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Aris Messinis/AFP

A Rússia, segunda maior potência militar do mundo, jogou seu poderio bélico sobre a Ucrânia e estarreceu os governos ocidentais, acostumados a dar as cartas do complexo jogo geopolítico e econômico no planeta. Sob a justificativa de que a entrada do país vizinho na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), bloco militar liderado pelos Estados Unidos, ameaça a soberania russa e afirmando que está ‘desnazificando’ a Ucrânia, acusada de abrigar grupos neonazistas, Vladimir Putin lançou ataques por terra, ar e mar na quinta-feira (24), naquela que já é chamada de ‘a maior ofensiva de um país contra o outro desde a II Guerra Mundial (1939-1945)’. Em ação veloz que indica cuidadoso planejamento, 24 horas depois de atravessar a fronteira  a partir da Crimeia – península que a Rússia anexou em 2014 -, na sexta (25), as tropas já alcançavam o perímetro de Kiev, a capital ucraniana.

Bairros da cidade, inclusive, já foram atingidos por bombas russas. Na sexta, o prefeito da cidade, Vitali Klitschki, confirmou ao menos cinco explosões nos arredores da capital ucraniana, segundo informações da rede de TV americana CNN. Além disso, ele disse que as forças militares da Ucrânia estavam em uma intensa luta contra o exército russo na região de Vasylkiv, subdivisão distrital da capital.

Putin, dizem os analistas políticos que nas últimas semanas tentam entender e explicar a pressão seguida da invasão à Ucrânia, teme a aproximação do país vizinho, que já fez parte tanto do território russo quanto da extinta União Soviética, com o Ocidente, representado pela Otan e União Europeia (UE). Entre as justificativas para a invasão, estão ainda o interesse do líder da Rússia, no poder há duas décadas, de criar zona de influência que protegeria a soberania russa contra avanços do Ocidente. Também diz querer impedir arsenais nucleares estrategicamente posicionados ao seu redor.

Além disso, Putin acusa a Ucrânia de promover ‘genocídio’ de cidadãos russos que vivem em cidades ucranianas. Na segunda (21), ele reconheceu a independência de duas províncias que desde 2014 tentam se separar da Ucrânia: Donetsk e Luhansk. As duas são pró-Moscou.

Na noite de sexta, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, afirmou que o destino do país estava "sendo decidido", enquanto as tropas russas se aproximavam de Kiev. "Esta noite será a mais difícil. O inimigo vem com tudo", disse Zelensky, ex-ator e apresentador de TV eleito em 2019 (leia o perfil do líder ucraniano), em  pronunciamento aos ucranianos. "Devemos resistir" (leia história do ucraniano de 80 anos que se alistou para lutar contra os russos).

Na mensagem, o presidente ucraniano acusou a Rússia de atacar escolas infantis. "Não há nada que possa explicar por que os jardins de infância e a infraestrutura civil estão sendo bombardeados", disse. Sites de notícias e emissoras de TV internacionais mostraram cenas de tanques russos passando sobre carros civis ucranianos. A invasão  provoca ondas de protestos em dezenas de países pelo mundo e até na própria Rússia.

Na quinta-feira, Zelenski publicou um vídeo em que afirmava ser o alvo nº 1 dos russos. "Eles querem destruir a Ucrânia politicamente destruindo o chefe de Estado", disse. Oficiais americanos afirmaram ao jornal The Washington Post que o governo dos EUA estaria preparado para resgatar Volodmir Zelenski, mas que até agora ele se recusou a sair da Ucrânia. Em 24 horas, Kiev foi bombardeada e sofreu dois ataques aéreos (Foto: Genya Savilov/AFP) Coquetéis molotov

As tropas russas entraram ainda na sexta no perímetro de Kiev e autoridades ucranianas mobilizaram milhares de civis para defender a cidade com fuzis e coquetéis molotov, em uma ofensiva que começa a encontrar sinais de resistência. Em Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia, os russos tiveram dificuldade para avançar, apesar de sua superioridade bélica.

Em meio aos combates, Vladimir Putin pressionou o Exército ucraniano a depor o presidente Volodmir Zelenski e substituir seu governo. "Peço que os militares ucranianos tomem o poder pelas próprias mãos", disse Putin. "Seria mais fácil para nós negociarmos com vocês do que com essa gangue de neonazistas e drogados", acrescentou, referindo-se ao líder ucraniano  e outras autoridades do governo do país.

Apesar de Zelensky ter origem judaica, a Rússia classifica autoridades ucranianas como ‘neo-nazis’ desde 2014, quando começou a guerra no leste da Ucrânia, entre separatistas pró-Rússia e forças de Kiev.

O apelo de Putin ao exército ucraniano foi feito horas depois de Zelensky ter convocado o presidente russo para se sentar à mesa de negociações, opção que o Kremlin não descartou de imediato, mas que deixou sem resposta clara até agora.

O presidente americano, Joe Biden, manifestou apreensão de que a capital ucraniana caísse rapidamente nas mãos russas. Mas, apesar do duro cerco russo, a população civil, incentivada pelo governo, se mobilizou ao longo do dia para defender a cidade como dava. Mais de 17 mil fuzis foram distribuídos para a população e as buscas no Google por "como preparar coquetéis molotov" dispararam nas últimas horas, segundo levantamento do Washington Post.

As baixas ucranianas na guerra, até a sexta, eram 137 mortos e centenas de feridos, segundo Zelenksky, que afirmou ainda que os ucranianos haviam abatido 800 soldados russos para se defenderem.

Fuga em massa

A chegada das tropas russa à periferia de Kiev levou milhares de moradores da capital  a fugir para o oeste da Ucrânia. A cidade já foi alvo em menos de 24 horas de dois ataques aéreos das forças de Putin. Plataformas de trens lotadas, comboios apertados e o medo de transitar nas ruas em meio a militares e bombas tornaram-se parte da rotina dos cidadãos.

Em busca de um local seguro, os ucranianos se amontoaram nas estações de trem à espera do embarque. Um comboio que partiu no início da noite de sexta levava famílias inteiras, jovens, crianças e idosos.

Os ucranianos se espremiam até mesmo nos corredores, viajando em pé no trajeto que os levaria até a fronteira polonesa a 900 quilômetros de distância. Até Varsóvia, capital da Polônia, seriam 20 horas de viagem.

A ONU estima que mais de 50 mil ucranianos já fugiram das tropas russas, rumo ao oeste do país, e esse número pode chegar a 5 milhões. Embora Polônia e Moldávia sejam o destino preferido da maioria dos civis, o Alto-Comissariado da ONU para Refugiados alerta que Romênia, Eslováquia e os países do Báltico também podem receber um fluxo grande nas próximas semanas. População de Kiev foge da guerra em direção aos países da Europa Central (Foto: Wojtek Radwanski / AFP) Reações pelo mundo

O presidente chinês, Xi Jinping, conversou na sexta com Putin, por telefone, e deixou claro que o lado chinês apoia o lado russo na resolução da questão por meio de negociações com o lado ucraniano. Xi observou que a China há muito mantém a posição básica de respeitar a soberania e a integridade territorial de todos os países.

O papa Francisco também tentou intermediar  resolução do conflito. O pontífice católico foi à Embaixada da Rússia junto à Santa Sé para transmitir sua preocupação com a invasão à Ucrânia ao embaixador russo, em uma quebra sem precedentes do protocolo diplomático. O porta-voz do Vaticano, Matteo Bruni, disse que o papa passou cerca de 30 minutos na embaixada.

Sanções

A União Europeia (UE) decidiu na sexta congelar bens europeus de Vladimir Putin, e de seu ministro das Relações Exteriores, Serguei Lavrov. Desde o início da pressão russa sobre a Ucrânia, o bloco, seguindo os EUA, tem adotado sistemáticas sanções econômicas contra Moscou.

A Casa Branca também afirmou que os EUA vão impor sanções aos dois russos, em uma rara, mas não sem precedentes, medida americana contra um chefe de Estado estrangeiro.

Brasil pressionado

O Brasil votou na sexta a favor de um projeto de resolução do Conselho de Segurança da ONU que deplora a invasão russa à Ucrânia, no que parece ser uma tomada de posição do país com relação ao conflito. Os EUA e países europeus vinham cobrando do Brasil uma posição, mas até a votação na ONU, o governo brasileiro ainda não tinha se pronunciado oficialmente sobre o conflito.

Na ONU, o embaixador que representa o Brasil no organismo internacional, Ronaldo Costa Filho, disse que o Conselho de Segurança deveria agir urgentemente diante da agressão da Rússia. "O enquadramento do uso da força contra a Ucrânia como um ato de agressão, precedente pouco utilizado neste Conselho, sinaliza ao mundo a gravidade da situação", reforçou o brasileiro.

O discurso foi totalmente oposto ao do presidente Jair Bolsonaro, que na quinta (24), chegou a desautorizar declarações do vice-presidente Hamilton Mourão criticando o ato russo e Vladimir Putin. Mourão, além de afirmar que não concordava com a invasão, afirmou que a Rússia estava agindo como a Alemanha nazista e que o Brasil não era neutro no confronto entre as duas nações europeias.

A Rússia, que é a atual presidente do Conselho de Segurança, vetou o projeto de resolução, enquanto China, Emirados Árabes e Índia se abstiveram da votação. O placar final ficou em 11 votos a favor da resolução, 4 abstenções e só o voto da Rússia, que tem o poder de veto, contrário.

Para o Brasil, a guerra na Ucrânia tem impactos econômicos, principalmente no agronegócio, inclusive na cadeia da pecuária. Analistas, ao longo da semana, afirmaram também que o preço dos combustíveis pode ser afetado e que a inflação e o PIB brasileiro correm riscos por conta das relações comerciais que o país mantém com a Rússia e a Ucrânia.

O que mais aconteceu:

Suécia e Finlândia  - A Rússia ameaçou. na sexta-feira (25), o que chamou de tentativas do Ocidente de incluir na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) a Finlândia e a Suécia, países conhecidos pela neutralidade, e alertou para as "sérias consequências" de uma adesão desses países ao grupo. "É evidente que a entrada de Finlândia e Suécia na Otan, que é um bloco militar, teria sérias consequências político-militares, que necessitariam de uma resposta do nosso país", afirmou em entrevista coletiva a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores russo, Maria Zakharova. No mesmo dia, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, agradeceu pelo apoio dos dois países durante a invasão. "A Suécia fornece assistência mi- litar, técnica e humanitária à Ucrânia", escreveu Zelenski no Twitter. "Grato ao primeiro-ministro sueco por seu apoio efetivo. Construindo juntos a coalizão anti-Putin!"

FMI - A diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, afirmou na Sexta (25), que as autoridades da Ucrânia solicitaram financiamento emergencial ao organismo. Em comunicado, a dirigente apontou que além da assessoria política contínua, o FMI está explorando todas as opções para apoio financeiro adicional, inclusive no âmbito do Acordo Stand-By existente para um valor em aberto de US$ 2,2 bilhões. "Para além da Ucrânia, as repercussões do conflito representam riscos econômicos significativos na região e em todo o mundo. Estamos avaliando as possíveis implicações, inclusive para o funcionamento do sistema financeiro, mercados de commodities e o impacto direto em países com vínculos econômicos com a região", avalia Kristalina Georgieva.

Anonymous - O grupo de hackativismo Anonymous, criado em 2003 de forma descentralizada e com membros em todo o mundo, declarou em rede social, na Quinta (24), que está "oficialmente em guerra cibernética contra o governo russo". Cerca de 30 minutos depois, o coletivo anunciou a derrubada do site do canal  RT News, rede de televisão estatal da Rússia, que voltou ao ar ao meio-dia de Sexta (25). Anonymous também anunciou a derrubada do site do Ministério da Defesa russo, que  permanecia fora do ar até o fechamento desta edição, à 0h de sábado (26).

A conturbada história dos vizinhos:

Sequência de invasões - A Ucrânia, ao longo da história, sofreu diversas invasões, foi incorporada pela Rússia dos czares ( imperadores), fez parte da antiga União Soviética e se tornou independente em 1991, com o fim do bloco socialista;

Vizinhança tensa - Ucrânia e Rússia têm laços culturais comuns, inclusive compartilham os mitos e lendas eslavos; além de laços sociais, sendo que muitos russos vivem na Ucrânia, e vice-versa; e parte considerável dos ucranianos fala o idioma russo. Vizinha da Rússia, com quem tem relação histórica intrincada, a Ucrânia faz ainda divisa com países que formam a União Europeia e/ou são da Otan;

‘Holomodor’ - Holomodor é a palavra ucraniana para 'genocídio por fome'. Entre 1931 e 1934, estima-se que 4 milhões de ucranianos morreram de fome após uma política agrária adotada por Stálin, líder soviético entre 1922 e 1953. Com solo fértil e produtora de cereais, a Ucrânia teve de implantar as fazendas coletivas criadas por Stálin e o processo não deucerto no país, provocando escassez generalizada;

Nazismo no passado - A historiografia registra que durante a II Guerra Mundial (1939-1945), na campanha da Alemanha nazista para invadir a Rússia, os alemães ocuparam  a Ucrânia. Os ucranianos, que se sentiam oprimidos por Stálin e ainda lembravam do drama do Holomodor, receberam as tropas do Terceiro Reich como  ‘salvadoras’ e acabaram se aliando aos nazistas. Foi  criado  o Exército da Libertação Ucraniano, que lutou ao lado dos nazistas contra os russos;

Nazismo no presente - Vlamidir Putin, o presidente russo, acusa a Ucrânia de ainda ser um país dominado por grupos neonazistas e, entre os motivos para a invasão do país, ele alega querer 'desnazificar' a Ucrânia. Ouvido pela BBC, o cientista político Adam Casey, especialista em Rússia na Universidade de Michigan (EUA), diz que essa afirmação de Putin é uma tentativa de moldar a opinião pública ainda com base na história da II Guerra, que acabou há quase 80 anos;

Crimeia e Otan - Em 2014, a Rússia invadiu e anexou a península da Crimeia, apoiando ainda as províncias separatistas de Donetsk e Luhansk. De lá para cá, as duas províncias vinham lutando pela independência e 14 mil pessoas já morreram. Na Segunda (21), a Rússia reconheceu a independências dessas cidades. Os russos também decidiram invadir a Ucrânia, na Quinta (24), por conta do interesse de Kiev de entrar para a Otan e a União Europeia e porque para Putin, a Ucrânia é estratégica para a Rússia criar sua zona de influência e segurança contra o Ocidente.

LINHA DO TEMPO A PARTIR DE 1991 EXPLICA FATOS DO CONFLITO

*Com informações das agências internacionais de notícias