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Paulo Sales
Publicado em 28 de outubro de 2019 às 05:00
- Atualizado há um ano
Raul Seixas e Paulo Coelho (foto/divulgação) Um momento nebuloso da vida de Raul Seixas, morto há 30 anos, foi revirado na semana passada. Reportagem da Folha de S.Paulo revelou que o cantor pode ter delatado o parceiro e amigo Paulo Coelho para agentes do Dops, durante a ditadura militar. A matéria antecipa uma revelação que está no livro Raul Seixas – Não Diga que a Canção Está Perdida (Editora Todavia), do jornalista Jotabê Medeiros, que chega às livrarias na próxima sexta. O autor teve acesso a um documento do período no Arquivo Público do Rio de Janeiro, mostrando que o órgão chegou a Paulo Coelho “por intermédio do referido cantor”.
O que aconteceu depois é de conhecimento público: Raul se livrou da prisão, mas foi obrigado a se exilar em Nova York; já Paulo foi preso clandestinamente e torturado pelos agentes da repressão. Ao livrar-se do inferno, afastou-se paulatinamente do parceiro. Mas nunca comentou sobre o episódio. Após a reportagem, declarou no Twitter: “Fiquei quieto por 45 anos. Achei que levava segredo para o túmulo.”
Não imagino até que ponto a imagem do velho roqueiro baiano sairá arranhada dessa história. Se confirmada, Raul corre o risco de entrar no índex dos artistas que colaboraram com a brutalidade fardada, dentre os quais desponta o nome de Wilson Simonal. Não me sinto capaz de julgá-lo, apenas tento compreender sob que tipo de coação essa delação pode ter acontecido. Em maio de 1974, a atmosfera era particularmente terrível. Por isso, mesmo que tenha agido de má-fé e sido um canalha com o amigo, é preciso tentar entender o que estava em jogo. Um estado de exceção cria uma atmosfera de medo permanente.
Ditaduras, todas elas, são propícias à germinação dos piores sentimentos. A União Soviética sob Stálin é um exemplo, assim como a Alemanha sob Hitler. Teme-se o amigo de infância, o vizinho de décadas, o simpático colega de trabalho. Teme-se até os próprios pensamentos. Raul possivelmente agiu – se é que agiu – movido pelo pavor, embora tanto ele quanto Paulo fossem inocentes, sem qualquer envolvimento com a luta armada ou algo do gênero. Suas músicas não eram sequer políticas, apenas enigmáticas, de difícil entendimento para energúmenos ansiosos por prender e arrebentar, para usar as palavras do general Figueiredo, aquele que preferia o cheiro de cavalo ao cheiro de povo.
Raul Seixas e Paulo Coelho são maiores do que todo esse horror. Juntos, compuseram canções simples, inventivas e de alcance universal, que até hoje fazem parte do nosso imaginário coletivo: Gita, Tente Outra Vez, Sociedade Alternativa, Tu és o MDC da Minha Vida, Eu Nasci Há 10 Mil Anos Atrás, A Maçã, Meu Amigo Pedro. Essas e muitas outras calam fundo nos corações e mentes do Brasil profundo. Paulo, que anos depois se tornaria um bem-sucedido autor de livros esotéricos medíocres, é um homem cujo caráter merece admiração. Já Raul, debilitado pelo alcoolismo e por uma saúde em frangalhos, foi embora cedo demais. Está mais do que evidente que ambos foram vítimas da barbárie e da estupidez dessa página infeliz da nossa história.