Religião: entre respeito e abuso

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  • Malu Fontes

Publicado em 4 de setembro de 2017 às 07:58

- Atualizado há um ano

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Com muita frequência vemos na imprensa denúncias de violência contra terreiros de candomblé, praticadas por pessoas de outras crenças e até por policiais. Os terreiros fazem parte da história brasileira. São, gostem ou não, elementos essenciais da história e da cultura baiana e o que acontece dentro deles não é da conta de outras religiões. Recentemente, voltou à tona na Bahia o debate em torno da laicidade do estado, em decorrência da instalação, numa das paredes do plenário da Assembleia Legislativa, de uma bíblia gigante em “homenagem ao Deus de Israel”.

As religiões que discordam da iniciativa não se manifestaram de forma violenta, embora não lhes faltem razões legais para levar essa querela para as barras dos tribunais. Que o estado brasileiro é laico, todo mundo sabe, e se finge não saber é por razões de caráter, de ignorância ou de má fé. Ou tudo junto, o que é mais provável. Esteticamente a obra gerou e continuará gerando controvérsia, mas quem dera a instalação da peça devesse atender apenas a questões estéticas e não ultrapassasse fronteiras muito mais complexas que essa.

EXORCISTA Seria sinal de bom senso e respeito dos gestores de órgãos públicos se compreendessem que religião, ou a não adesão a nenhuma delas, é questão de ordem pessoal e, no máximo, familiar. Não sei como se sente, por exemplo, a maioria das pessoas internadas em hospitais públicos quando, nos horários de visita, são alvo de grupos de pessoas absolutamente desconhecidas que as cercam em momentos de fragilidade e numa clara demonstração de invasão de privacidade, abrem suas bíblias e começam a orar sem perguntar se podem.

Não há preocupação com o incômodo ou desconforto que podem causar. Muito menos com o volume das vozes. E haja oração em nome de sua religião, sem interesse na crença de quem está ali acamado. Se um dia acontecer comigo, e se a iniciativa de chamar alguém para rezar à minha frente não for exclusivamente minha, estou certa: pela minha reação, certamente chamarão um exorcista. Não toleraria tamanha invasão. Por que não se vê isso em hospitais particulares?  SÃO JOAQUIM Se alguns grupos evangélicos se acham no direito de destruir terreiros e ofender mães de santo, o que fariam se, em um espaço historicamente associado à venda de produtos usados por neopentecostais, adentrassem grupos do povo de santo, usando suas indumentárias de ritos, carregando instrumentos de sua fé e usando estridentes caixas portáteis de som para conclamar todos ali a louvar sua crença? Duvido que essa cena tivesse final feliz. Pois bem: na Feira de São Joaquim essa é uma cena comum, só que invertida.

Todo mundo sabe que quem vai à Feira de São Joaquim o faz para comprar comestíveis para festas ou revenda, sobretudo grãos, frutas, verduras, carnes ou pescados, para comprar flores, cerâmica e artesanato, levar turistas para conhecer ou, vamos combinar, para comprar tudo o quanto é material para rituais do candomblé. O que têm feito grupos e grupos de evangélicos? Saem de casa e vão em grupos, uniformizados com camisas alusivas às igrejas onde congregam, com caixas de som portáveis do tamanho de uma TV de 20 polegadas, anunciar aos gritos a volta de Jesus e a condenação dos pecadores. Fazem isso entre os labirintos dos boxes onde e enquanto filhos de santo compram seus produtos. Poderíamos acreditar que cenas como essas são um belíssimo exemplo de tolerância e convivência entre diferentes crenças. Mas invertamos os cenários e as personagens e vejamos o quão improvável é acreditar nessa possibilidade.

*Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo da Facom/UFBA.