República do trava-línguas: entenda os problemas de fala de Bolsonaro e Lula

Presidente eleito tem anquiloglossia, enquanto ex-presidente sofre de ceceio

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  • Da Redação

Publicado em 9 de dezembro de 2018 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Fotos: Evandro Veiga/CORREIO e José Cruz/ABr

Lula tem língua solta e Bolsonaro, língua presa (Fotos: Evandro Veiga/CORREIO e José Cruz/ABr) Os dois grandes líderes de massa do país, nos últimos anos, talvez sejam incapazes de pronunciar ‘massa’ sem cuspir. No caso do ex-presidente Lula, que está com a língua presa em Curitiba, ironia sobreposta: ele tem, na verdade, língua solta, que os fonoaudiólogos chamam de sigmatismo ou ceceio. Já quanto ao presidente eleito Jair Bolsonaro, elenão se sai muito bem na pronúncia de palavras com sons de S, segundo especialista ouvida pelo CORREIO, porque provavelmente tem anquiloglossia – ou língua presa, como dizem as massas.

Cravar o que, de fato, causa a alteração da fala em ambos só seria possível com uma análise, literalmente, de dentro da boca de cada um, como explica a fonoaudióloga Ana Ribeiro. “Para fazer um diagnóstico preciso seria necessário um exame”, justifica ela, ao ser desafiada a analisar vídeos de famosos que demonstram não estar com a língua muito afiada.

“Grandes personalidades apresentam estes problemas de articulação que afetam a compreensão do que falam. Vendo pela TV, não dá pra gente dizer se o cara tem hipotonia de língua – a língua um pouco flácida, digamos – ou língua presa, mas Lula, Rui Costa, (Nelson) Pelegrino, Romário, Cazuza (in memoriam), Dudu Nobre, por exemplo, eu diria que têm sigmatismo, ou seja, a interposição lingual fica principalmente nos S”, observa a especialista, que costuma atender pessoas com trabalhos voltados para a comunicação profissional nas áreas de Política, Jornalismo, Direito e Artes Cênicas. A pedido do CORREIO, a fonoaudióloga Ana Ribeiro analisou os problemas de fala de personalidades (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Para Ana, no entanto, a situação do presidente eleito parece ser mais complexa que as demais.“Bolsonaro acho um caso mais complicado porque a arcada dentária parece que já foi comprometida. Interposição lingual, (ele tem) com certeza, além de distorção de muitos fonemas e deglutição atípica”, diz, ao comentar que observou bem uma cena do programa Fantástico (TV Globo) no qual o político aparece comendo um cachorro-quente.A fonoaudióloga lembra que a função primordial da boca é, justamente, comer, e que seu uso na fala é evolutivo. Saber como uma pessoa ingere e engole as coisas, portanto, também influencia no diagnóstico. “Isso é importantíssimo porque a gente precisa reequilibrar os músculos para padronizarmos a deglutição e, só depois, organizar os sons que saíram do lugar”, detalha.

'Teje presa' A grande diferença entre a língua presa e a solta está bem debaixo do nosso nariz, ou melhor, da língua, como explica a odontopediatra Suzane Grubisik, doutora em Odontologia e Fisiologia Oral pela Unicamp.“A língua presa, característica quando o freio lingual é curto, sem elasticidade, engrossado, ou com posicionamento inadequado, é considerada uma anomalia que pode restringir as funções orais de amamentação, sucção, deglutição, mastigação e fala”, lista ela.O frênulo ou freio lingual é aquela membrana entre a parte inferior da língua e o assoalho da boca. “A pessoa não consegue (fazer a língua) subir até atrás dos dentes incisivos superiores (céu da boca), e aí o som fica todo comprometido, com gente que fala ‘agaga’ ao invés de arara”, destaca Ana Ribeiro.

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Apesar do que muitos pensam, esses casos são um pouco mais raros que os de língua solta, ou ceceio. “Uma língua presa, além de atrapalhar S e Z, T, D, N, afeta os R brandos presentes em ‘cara’, por exemplo, além de grupos travados como ‘Brasil’, ‘creme’”, exemplifica.

Solta na pista Mas o que faz com que a língua presa de Lula vire, de uma hora pra outra, uma língua solta? “Aquilo que a maior parte das pessoas chama de língua presa, na verdade é uma língua normal com problema de tônus muscular, o que afeta a articulação dos fonemas”, explica Ana.

A fonoaudióloga lembra que, anatomicamente, as línguas costumam ser maiores do que o espaço da boca, e é preciso que ela, sem se apoiar nos dentes, faça todos os movimentos. “Se a língua fica apoiada, resvalando nos dentes todos, nós acabamos por distorcer os sons da fala”.

Essa frouxidão do músculo, que aparentemente acomete o ex-presidente, pode prejudicar a fala de duas formas: quando a língua, em alguns casos mais gordinha, é projetada para a frente (ceceio anterior), ou quando ela se espalha para os lados (ceceio lateral), entre as arcadas inferior e superior. Arte: CORREIO Gráficos Trauma e tratamento Se o problema de articulação na fala virou uma marca de muitas personalidades e até de personagens fictícios como Patolino (ceceio agudo) e Cebolinha (dislalia, caracterizada pela troca do R pelo L), na vida real, o problema na fala é um carimbo não muito agradável.

É o caso do universitário Marcelo Silva (nome fictício), 27 anos, que admite, ainda hoje, não lidar bem com os traumas que a língua presa o impôs desde a infância. “É muito chato você tentar falar as coisas e as pessoas não te entenderem, fazerem chacota. Tinha gente que achava engraçadinho, mas na maioria das vezes era ruim”, diz ele, lembrando dos tempos de escola, quando ganhou apelidos difíceis de esquecer.

Mas, é bom lembrar, o tratamento ajudou o rapaz. “No meu caso, a língua tem dificuldade de chegar no céu da boca. Com isso, eu, desde pequeno, jogava a língua pra trás, pra tentar ‘competir’, e isso foi pior. O tratamento, com os exercícios certos, melhorou em mais de 50%”, diz ele, que sempre evitou falar em público.“O problema me fez ser um pouco mais introvertido do que já sou, mas hoje eu acho que lido melhor com isso”, conclui o estudante, que fez “psicólogo e fono até um dia desses”.Sim, há tratamento para qualquer caso. “E em todas as idades. Basta você querer se ver livre do problema. Eu trato (os pacientes) recolocando o tônus da língua normal, consertando a deglutição, que foge para um padrão atípico na maior parte dos casos. Daí, reposiciono os fonemas rapidinho”, comenta Ana Ribeiro, ao destacar um outro aspecto interessante da terapia em pessoas mais velhas: “mesmo adultos, que gostam de comer coisas mais pastosas, voltam a amar os sólidos. Claro! Com musculatura para mastigar a carne...”.

E do ponto de vista social, as coisas também mudam. “Acaba que muita gente se desestimula de falar, apresentar trabalhos, ir a entrevistas de emprego porque não se expressa bem e sente vergonha disso. Gente, há correção! Procure um fonoaudiólogo”, conclui, com a propaganda na ponta da língua.

Confira os principais tipos de problemas de fala das personalidades: Jair Bolsonaro (presidente eleito) Anquiloglossia - Dentes ‘empurrados’ pela língua, aparentemente presa, com desgaste em parte da arcada; deglutição possivelmente atípica; durante a fala, interposição lingual na pronúncia dos sons sibilantes (com S e Z), e dificuldade nas pronúncias de palavras com T, D e N, caracterizada pela distorção de muitos fonemas. Lula (ex-presidente); Rui Costa (governador); Cazuza (cantor); Dudu Nobre (cantor); Romário (senador e ex-jogador); Nelson Pelegrino (deputado federal); Antônio Palocci (ex-ministro); Patolino (desenho animado)Sigmatismo ou ceceio - Caracterizado na interposição lingual (língua entre os dentes) principalmente na pronúncia de palavras com S e Z. Também chamada de ‘língua solta’, normalmente é causada pela flacidez da musculatura da língua. Por conta da frouxidão, ela é projetada para frente (ceceio anterior) ou para os lados (ceceio lateral) durante a fala. Cebolinha (personagem dos quadrinhos)Dislalia - Caracterizada pela troca do R pelo L em várias palavras. Distúrbio comum em crianças de até 6 anos, com diversos erros na pronúncia ou dificuldade de articular palavras. Normalmente desaparece com o tempo, ainda na infância. ***

Problema pode dificultar amamentação; cirurgia é indicada em menos de 20% dos casos Uma das funções de primeira ordem (e primeira hora) cumpridas pela língua na vida de qualquer pessoa envolve a amamentação. Ante isso, é importante olhar desde os primórdios se o músculo está trabalhando direitinho, análise inclusive prevista em lei, em vigor há quatro anos. 

“Assim que a criança nasce, já virou protocolo realizar o teste da linguinha na maternidade”, lembra a odontopediatra Suzane Grubisik, citando a lei 13.002/2014, que obriga a realização do Protocolo de Ava do Frênulo da Língua em Bebês.

O procedimento, feito durante a triagem neonatal, ajuda a identificar se o bebê tem alguma má-formação na boca e, principalmente, no freio da língua, mas desconsidera o fato de que, em muitos casos, o problema se ‘corrige’ sozinho, de forma natural. 

Diante disso, a obrigatoriedade é criticada pela Associação Brasileira de Odontopediatria, por considerar que a avaliação deve ocorrer posteriormente, após algumas semanas de vida.

“Isso (teste da linguinha) não é ruim, mas o problema é que o exame leva os pais a entender que o bebê de língua presa deve fazer cirurgia, e não é assim que funciona. Só se deve fazer isso se interferir nas funções da língua. Basta acompanhar, com a ajuda de um pediatra, conforme a criança for crescendo, se há algum problema”, explica Suzane, que coordena a Especialização em Odontopediatria do Centro de Estudos Odontológicos (Ceno), na Avenida Garibaldi. A odontopediatra Suzane Grubisik, que acompanha casos de crianças com língua presa (Foto: Divulgação) Ela conta que, do total de atendimentos que faz todo mês, apenas 20% dos casos acabam com encaminhamento ou indicação para cirurgia, por estarem interferindo na função da língua. “Muitas vezes, o encaminhamento é feito direto com o cirurgião bucomaxilo, que faz o procedimento baseado na indicação do fonoaudiólogo ou pediatra”, menciona Suzane, destacando também que a odontopediatra tem apresentado um olhar mais criterioso em relação ao diagnóstico.

Durante o período de análise do bebê, em casa, não é raro se identificar algo diferente na amamentação, como lembra a fonoaudióloga Ana Ribeiro. “As mães, muito antes de existirem os protocolos, sabem analisar se a linguinha do neném fica sempre pra fora, como os respiradores bucais ou não alcançam o céu da boca”.

Chupando dedo Nascer com o frênulo lingual no lugar, no entanto, não garante que a criança não desenvolva problemas que irão interferir, lá na frente, em sua forma de falar ou comer, por exemplo.“Eu tive uma menina (paciente) cuja língua estava tão hipotônica que empurrou os dentes inferiores para fora. Dava uma impressão de macroglossia, ou seja, de uma língua maior do que o padrão. Mas era chupar dedo até 15 anos e desenvolver uma hipotonia de língua gigante, com todas as consequências”, exemplifica Ana Ribeiro.Ela lembra que quando se chupa o dedo, se “empurra” o céu da boca com a pressão, “o que pode acabar comprimindo os seios nasais, se não parar logo com o mau hábito”. “Além disso, a língua foge de sua posição porque com o céu da boca mais afundado (palato ogival, como as das igrejas), a língua não tem um lugar para se apoiar e acaba se apoiando nos dentes da frente para falar e para engolir, causando deglutição atípica, com hipotonia de língua e sigmatismo (língua solta)”, complementa a fonoaudióloga. 

Cirúrgico No caso dos bebês, mesmo os que não chupam dedo, a correção cirúrgica é chamada de frenotomia ligual, que é um procedimento simples, com incisão na base ou parte posterior do freio da língua.“Isso (cirurgia) só se faz se a anquiloglossia (língua presa) estiver interferindo na função da língua, que é a função de sucção ou ordenha, na amamentação”, continua Suzane Grubisik.Ela orienta, em qualquer caso, a busca por orientação de um pediatra, odontopediatra ou fonoaudiólogo, que podem fazer avaliação e diagnóstico. Suzane afirma ainda que a cirurgia deve ser realizada, preferencialmente, por um pediatra ou cirurgião dentista especializado em bucomaxilofacial ou odontopediatra. “Os profissionais de periodontia também fazem bastante esse tipo de procedimento. O bebê, assim que passa pelo procedimento, já consegue fazer a ordenha imediatamente”, acrescenta.

Ainda conforme a odontopediatra, independente da idade que a correção cirúrgica é feita, é preciso fazer o acompanhamento do caso.