Rubem Fonseca deixa obra marcada pela ironia, violência e inovação estilística

Consagrado no conto e no romance, escritor publicou mais de 30 livros, muitos adaptados para o cinema e para a televisão

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  • Ana Pereira

Publicado em 16 de abril de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação

“Escrever foi a maior agonia de todas as lutas que enfrentei”. Lida rapidamente, a afirmação do escritor Rubem Fonseca parece não  condizer com a produção literária tão intensa que ele criou nos últimos 57 anos. Será que a vida do escritor que ajudou a formatar a moderna literatura urbana nacional foi uma eterna agonia? Porque o autor mineiro de alma carioca, que nos deixou nessa quarta (15), aos 94 anos, após sofrer um infarto em sua casa no Rio, manteve a escrita num ritmo incessante. E foi desde os anos de 1970  consagrado como um dos nomes mais importantes da nossa literatura. 

Talvez a agonia venha mesmo da intensidade de seus contos, crônicas e romances. Desde que estreou com Os Prisioneiros, em 1963, Fonseca chamou atenção pelo realismo, brutalidade e falta de pudor em ficcionalizar o dia a dia das grandes  cidades. Histórias que pareciam saltar das páginas policiais dos jornais, onde passearam  criminosos, prostitutas, delegados duvidosos e  outros seres que vivem à margem da boa família brasileira.

“Eu escrevi 30 livros. Todos cheios de palavras obscenas. Nós, escritores, não podemos discriminar as palavras. Não tem sentido um escritor dizer: ‘Eu não posso usar isso’. A não ser que você escreva um livro infantil. Toda palavra tem que ser usada”, disse Rubem em uma de suas raras aparições públicas, em 2015.

 A ocasião marcou  a entrega do Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo  conjunto da obra. A honraria da ABL, para a qual ele nunca se candidatou, se juntou aos muitos prêmios, entre eles alguns Jabutis e o badalado Prêmio Camões, em 2005. Para explicar por que nunca havia se candidatado à Academia e também por que era avesso a compromissos públicos, entrevistas e até a ser fotografado, Rubem resumiu que era “um homem idiossincrático e idiossincrasias não se explicam”.

  Rubem Fonseca nos anos 80: escritor era averso a entrevistas e até a fotografias  (Foto Marli Goulart/Estadão Conteúdo) Melhor tradução

Na biografia discreta do advogado constam passagens como ex-camelô e ex-delegado de polícia - experiência fundamental para suas histórias. A publicidade ele deixava por conta dos textos. Depois de Os Prisioneiros, vieram os livros de contos A Coleira do Cão (1965), Lúcia McCartney (1967) e Feliz Ano Novo (1975), sagrando-o no estilo. Este último livro, que o projetou, foi proibido pelo governo militar por fazer “apologia da violência” e conter cenas e expressões atentatórias “à moral e aos bons costumes”.

O ano de 1973 marca o lançamento do primeiro romance, O Caso Morel. Depois vieram livros como A Grande Arte (1983), Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos (1988) e Agosto (1990), só para citar alguns mais conhecidos, que o tornaram um dos autores mais populares do Brasil. 

O escritor André de Leones, leitor atento da obra de Fonseca, afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo que Rubem Fonseca é tão imprescindível em 2020 quanto era em 1963.  “Acho importante ressaltar isso porque a recepção de sua obra sofre em várias frentes, seja com a má vontade em relação aos livros mais recentes (como o excelente Amálgama) seja com as leituras preguiçosas e contaminadas que ainda se faz por aí”, disse.

Lamentando a perda do amigo, o  escritor Sérgio Sant’Anna destacou uma de suas principais marcas: “Na descrição da cidade do Rio de Janeiro, onde ambientava seus livros, no meu entender tem importância tão grande quanto Machado de Assis. Um Machado, claro, dos tempos modernos. Tive alguns papos com ele, sempre muito gentil. Era muito afável, capaz de ler originais de jovens autores e dar opiniões valiosas sobre os trabalhos deles. O grande consolo é que viveu uma vida extremamente bem vivida”.

Até a noite dessa quarta, a família não havia divulgado informações sobre o sepultamento. Rubem Fonseca teve três filhos com Théa Maud: Maria Beatriz, José Alberto e o cineasta José Henrique Fonseca, que, em 2016, adaptou Lúcia McCartney para uma minissérie da HBO. Além do filho, Rubem inspirou uma geração de autores. Nomes como Patrícia Melo, Joaquim Nogueira, Tony Bellotto e Luiz Alfredo Garcia-Roza, que levam seu estilo adiante. 

  Filme O Homem do Ano, com Murilo Benício e Cláudia Abreu (Foto: Divulgação) Obras adaptadas para o cinema  e televisão

Lúcia McCartney - Adaptação para televisão de um dos contos do livro Lúcia McCartney (1967). A trama seguiu fiel na minissérie de 2006, protagonizada por Antônia Moraes e Eduardo Moscovis: conta a história de uma prostituta louca pelos Beatles que encanta um diplomata, por quem se apaixona.

Agosto - Minissérie que adapta o livro de 1990, que tem como pano de fundo os acontecimentos que culminaram no suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954. Mesclando ficção e realidade, conta a história do assassinato de um empresário e as investigações, cujas pistas levaram o investigador Mattos ao palácio do Catete e poderiam incriminar pessoas próximas do presidente. No elenco: José Mayer, Letícia Sabatella, Vera Fischer, Tony Tornado e José Wilker.

Mandrake - Série da HBO, premiada com dois Emmy, estrelada por Marcos Palmeira, se baseia em dois livros do mestre Rubem Fonseca: A Grande Arte (1983) e Mandrake, a Bíblia e a Bengala (2005). A história é de um advogado carioca, metido a detetive, que se especializado em resolver casos de chantagem e extorsão.

O Homem do Ano - Neste filme (2003) protagonizado por Murilo Benício, o roteiro é de escrito por Rubem Fonseca. A direção é de seu filho, Zé Henrique Fonseca. A trama gira em torno de um homem comum que se torna um assassino venerado tanto pela população carioca quanto pela criminalidade.

Tempo de Amar - A novela das seis da Rede Globo foi esrita a partir da história de amor e desencontros do avós de Rubem Fonseca e ele fez questão de participar da escrita do roteiro. A trama conta a história d eum jovem casal português. Ela rica e ele pobre. Decidido a vencer na vida, ele viaja ao Brasil para tentar conseguir dinheiro e pedi-la em casamento, sem saber que a amada ficou grávida.

Destaques na bibliografia

  A Grande Arte (1983) - Segundo romance da carreira do grande contista, A Grande Arte apresenta o personagem Mandrake, advogado charmoso, metido a detetive. Vencedor do Jabuti em 1984 Lúcia McCartney (1967) -Ganhador do Jabuti em 1970, Lúcia McCartney reúne quatro contos. Entre eles o que titula o livro e que narra a história de uma garota de programa que se apaixona por um dos seus clientes O Caso Morel (1973) - Primeiro romance do autor, O caso Morel entrega uma história que gira em torno do embate entre um escritor e um artista excêntrico preso e conta suas histórias cheias de sexo e violência

Carne Crua (2018) -Livro de contos, Carne Crua é a última publicação de Rubem Fonseca. Lançado sem alarde, o título apresenta 26 contos inéditos que se equili- bram entre o pastiche e a análise sociopolítica

* Colaborou Doris Miranda