'Samantha é detestável', diz Emanuelle Araújo sobre primeira comédia da Netflix

Protagonizada pela atriz e cantora baiana, Samantha! estreia sexta-feira (6)

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  • Laura Fernades

Publicado em 1 de julho de 2018 às 06:05

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Netflix/Divulgação

Quem nunca teve um ídolo mirim? Alguns vão lembrar do Balão Mágico, do Trem da Alegria, do Sítio do Picapau Amarelo, do Castelo Rá-Tim- Bum e, por que não, dos youtubers e digital influencers que dominam cada vez mais a cena contemporânea. Pois é no clima de nostalgia que a primeira comédia brasileira da Netflix, Samantha! (assim, com exclamação mesmo), estreia sexta-feira (6) contando a história de uma ex-celebridade mirim dos anos 1980 que, em 2018, tenta desesperadamente voltar aos holofotes.

Há quem compare a protagonista interpretada pela baiana Emanuelle Araújo com Simony, do Balão Mágico. Afinal, ambas viraram celebridade antes dos dez anos, lutaram para manter o sucesso e tiveram dois filhos com um ex- presidiário que, na série, é vivido pelo carioca Douglas Silva (Cidade de Deus/2002 e Cidade dos Homens/2002). Outra semelhança está na viciante trilha sonora do compositor Edgard Poças, que também assina a marcante trilha do Balão Mágico.

Porém, a produção capitaneada por Alice Braga e Felipe Braga nega a referência direta e, na verdade, pouco importa se Samantha é Simony. Afinal, a série foge da biografia e se preocupa muito mais em mostrar, com humor e ironia, os “efeitos sangrentos” do showbizz. Seja na critica ao culto à imagem, em tempos de redes sociais; à hiperssexualização da mulher na televisão brasileira; ao bullying sofrido pelas crianças inseridas cada vez mais cedo no meio artístico; e às consequências psicológicas da exposição dessas mini-celebridades.

Ou seja, Samantha! vai além das referências aos ídolos mirins dos anos 1980 e traça um retrato atual e universal da guerra pelos cliques e pela audiência. “Amor é meu ovo, Samantha. Sabe o que dá audiência? É sangue”, diz seu agente, Marcinho, interpretado pelo comediante Daniel Furlan,  roteirista e ator da badalada websérie Choque de Cultura. “Esse não é o programa que eu quero. Quero um programa relevante, com conteúdo”, contrapõe a artista. “Relevante é sexo, escândalo e merchandising”, ignora o agente. Agente de Samantha, Marcinho é interpretado pelo comediante Daniel Furlan, roteirista e ator da badalada websérie Choque de Cultura (Foto: Divulgação) Da cartinha ao like Com uma ironia que prende a atenção e provoca boas risadas ao longo de sete espisódios com cerca de 30 minutos, já vistos pelo CORREIO, a primeira temporada de Samantha! brinca com o imaginário de muita gente. Com participação de Gretchen, a comédia reúne flashbacks cheios de cor, brilho, referência ao VHS, às fitas cassete, às cartas dos fãs e às mensagens subliminares escondidas nos vinis (quem nunca tentou tocar o disco ao contrário?).

“Tem uma coisa geracional aí. Tem uma leva de produtores, roteiristas e diretores que hoje estão produzindo e que têm como referência a infância dos anos 1980. Então os anos 1980 viraram ‘vintage’ pra gente. Daqui a alguns anos serão os 1990 e a gente vai se sentir velho”, ri o criador da série, Felipe Braga, 38 anos, também roteirista do filme Marighella que será lançado em 2019, com direção de Wagner Moura.

Mas quem não viveu os anos 80 não vai se sentir perdido, pelo contrário. Samantha não fica presa ao passado e coloca em cena uma personagem que é a rainha do Instagram, Laila (Lorena Comparato), inspirada em uma das Kardashians: Kylie Jenner. Sempre maquiada e feliz, Laila vive em função de acumular ‘likes’ e “bombar o Insta”. “Adorei sua família, bebê. Colorida, alegre, cheia de minorias. Dá um post lindo”, diz a digital influencer no quarto capítulo da série que daria um bom episódio de Black Mirror. Douglas Silva (ao centro) é Dodói, ex-presidiário que tentar reconquistar os filhos Brandon (Cauã Gonçalves) e Cindy (Sabrina Nonato) (Foto: Fábio Braga/Divulgação) Toque dramático A partir do questionamento sobre o que é ser famoso e o que é ser relevante, Samantha! problematiza a carência e a crise derivadas do sucesso precoce. Seja ao mostrar um reality com cantores mirins em 2018, o Enjaulados Kids, seja evidenciando a infância de Samantha que, em 1980, fazia oito shows por semana, sem dormir, estudar ou comer.

“Aqui no Showbizz ninguém vai ter pena de você”, diz um dos personagens para “a criança mais amada do Brasil”. Não à toa, Samantha fica uma menina cada vez mais mimada e rude com todos ao seu redor. Está atrasada para o programa? Passa como um furacão pelos corredores, mandando a equipe sair da frente e calar a boca.

“Em alguns momentos Samantha é detestável, em outros ela sente muito amor”, pondera Emanuelle Araújo, 41, atriz que também começou a carreira cedo. Com dez anos, passou a atuar em um grupo de teatro de Salvador e, com 15, já estava cantando no trio elétrico.“Samantha é fruto do ambiente em que cresceu: na televisão, criada por maquiadores, figurinistas”, avalia. “Essa talvez seja a grande dificuldade: como manter a ludicidade das nossas crianças?”, questiona Emanuelle.Par romântico de Emanuelle na série, Douglas Silva também começou cedo na carreira de ator e, com dez anos, já era o Dadinho de Cidade de Deus e o Acerola de Cidade dos Homens. Em Samantha, dá vida a Dodói, um ex-jogador de futebol famoso que vai preso e sai da cadeia tendo uma relação com a fama oposta à de Samantha: prefere o anonimato.

“Comecei cedo e não é que não estava preparado para a fama: eu não sabia o que era. Fazia teatro comunitário e nunca tive a missão de ser famoso, queria ser militar. A gente nunca pensou no tamanho do sucesso de Cidade de Deus e tem que ter cuidado mesmo de não pular etapas, para não se tornar um adulto frustrado e ter problemas no futuro”, destaca Douglas.

 Apaixonado por Samantha na infância, quando ainda fazia parte da Turminha Plimplom junto com Bolota (Maurício Xavier) e a estrela mirim, o personagem Tico (Rodrigo Pandolfo) nutre um amor platônico por Samantha. Mesmo depois de adulto, passa mal, literalmente, na presença da criança mais amada do Brasil que não hesita em fazer bullying com Tico.

 “A sociedade está doente e isso é mais psicológico do que físico. Há a projeção do ideal que você fica tentando alcançar e que, na verdade, é mentiroso”, alerta Pandolfo, sobre a série que termina dando pistas de uma segunda temporada. “Como uma pessoa cresce, fica 20 e poucos anos e não muda? É assustador, preocupante. É muito importante trazer isso à tona, porque, cara, isso é de fato uma doença contemporânea”, provoca.

*A repórter viajou a São Paulo a convite da Netflix

‘Acho delicado a criança estar exposta à vivência adulta’, diz Emanuelle

Com uma atuação que se destaca na série Samantha!, a atriz e cantora baiana Emanuelle Araújo conversa sobre a personagem “fogo no olho”, sobre a falta de ludicidade nas crianças de hoje e sobre o excesso de proteção em relação aos conteúdos audiovisuais contemporâneos: “o coleguinha da escola vai mostrar”. Confira o breve bate-papo com a artista.

Samantha é comédia que fala com todos os públicos e inclui temas como feminismo, casamento inter-racial e bullying. Isso chamou sua atenção? Pra mim é extremamente importante e uma das coisas mais bacanas da série. Ela fala de inclusão, é contemporânea e fala com todos os públicos. Tudo isso tem muito a ver com não trazer para os personagens para o julgamento. Samantha tem uma filha ativista [e vegana] e um filho que quer, talvez, ser um novo artista. Ela convive com isso sem nenhum tipo de crítica. A própria relação com o Dodói [Douglas Silva], que foi inusitada, com ele preso, conversa muito com o que a gente está precisando no mundo contemporâneo que é o não julgamento, o respeito às escolhas de cada um.

Os personagens estão no constante desencontro: Dodói quer retomar a família e a Samantha as glórias do passado. Como foi trabalhar isso combinando humor e drama? Samantha! é uma comédia de situação, o drama e a comédia andam juntos e se potencializam quando aparecem de mãos dadas. A primeira cena da série de Samantha é uma cena engraçada, mas é uma cena triste. Você vê aquela menininha linda, cheia de fama, virando aquela mulher com aquele maiôzinho trash. É engraçado, mas é triste. A Samantha fala disso sempre, em todos os personagens. Uma das coisas que acho mais legais dessa história, antes de qualquer coisa, é que a gente não ficou no estereótipo, na caricatura. Essa coisa de formatar família já era. Eles são uma família: ele na prisão, ela com as crianças. A gente tentou achar a dor e a delícia de cada relação.

Samantha é, ao mesmo tempo, inteligente, ambiciosa e cruel. Como foi essa construção? Em alguns momentos ela é detestável, em outros ela sente muito amor. A Samantha é fruto do ambiente em que cresceu. Ela cresceu na televisão, foi criada pelos maquiadores, pelos figurinistas, então no fundo você vai entendendo que ela é reflexo do meio. E que ela também vai criando as próprias opiniões muito por conta do relacionamento com Dodói, que é um cara muito coração. Esse fogo no olho é a marca dela: ela é muito objetiva, batalha muito pelo que quer. Mas, no fundo, tem um coração.

A gente observa que as crianças estão cada vez mais cedo inseridas no meio artístico. Qual é a importância de mostrar as consequências disso? Acho muito delicado que a criança possa estar exposta a tantas coisas, a uma vivência adulta. Essa talvez seja a grande dificuldade: como manter a ludicidade das nossas crianças? Tenho uma filha de 20 anos, fui mãe nos anos 1990, mas tenho uma sobrinha de 4 anos e fico pensando: vamos mostrar o Sítio do Picapau Amarelo pra ela, vamos dar de presente um joguinho de armar. Fico tentando mostrar uma nostalgia que não é negar o contemporâneo, porque não acho que tem que proteger. O coleguinha da escola vai mostrar. Esconder é bobagem, mas você deve informar com o que acredita. Aos dez anos, trabalhei em um grupo de teatro, em Salvador, e com 15 já cantava no trio elétrico, em bandas. Já estava vivendo essa coisa da resposta do público. Mas talvez o teatro tenha me segurado na ludicidade e esse deveria ser nosso foco. Que a criança não perca o lúdico.