Samuca, o andarilho de Ondina, ganha um lar após mais de 30 anos

Em busca de sua história, Obras Sociais Irmã Dulce receberam idoso em abrigo

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  • Thais Borges

Publicado em 13 de abril de 2018 às 06:04

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Antonio Queiroz/Arquivo CORREIO

O ano era 2010. Recém-chegada a Salvador, caloura no curso de Jornalismo da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Quase todos os dias, passava para um café da manhã na delicatessen da Avenida Adhemar de Barros, e era lá que o encontrava. Sempre com um paletó velho debaixo de um sol escaldante, o homem de idade um tanto avançada caminhava sem destino pelas transversais de Ondina. 

Sempre pareceu perdido em seu próprio mundo – nós é que éramos estranhos ali. Logo veio o costume com sua presença – tanto costume que, por vezes, sequer reparei nele nos quatro anos seguintes. Nunca soube seu nome. Nunca soube que mais do que uma pessoa em situação de rua, aquele homem tinha se tornado em uma figura icônica do bairro, onde permaneceu por pelo menos 30 anos.

De volta ao presente, veio a notícia de que aquele senhor de Ondina não estava mais por lá. Descobri que seu nome – ou apelido – era conhecido por muitos moradores e estudantes da universidade: Samuca. E, agora, ele tinha novo endereço: desde o dia 3 de março do ano passado, Samuca é um dos 72 moradores do Centro Geriátrico das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid).  Samuca está morando no Centro Geriátrico das Obras Sociais Irmã Dulce (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Ele chegou ao abrigo através da própria superintendente da Osid e sobrinha de Irmã Dulce, Maria Rita Lopes Pontes. Ela soube, através de uma cabeleireira, que Samuca estava na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) dos Barris. Estava doente, com um quadro de infecção urinária e hérnia. Maria Rita o conhecera 27 anos antes, quando se mudou do Rio de Janeiro para Salvador, para a Ondina. Em diferentes momentos, disse a ele que poderia ajudá-lo, se quisesse. 

Agora, Samuca tinha recebido alta da UPA, mas não tinha para onde ir. De forma indireta, Maria Rita sentiu que a hora tinha chegado. Justamente naquele período, um dos leitos da Osid estava vago. E, assim, pouco depois, o leito 570 recebeu um ocupante. 

Com medo Os primeiros dias foram difíceis. Quando chegou à Osid, Samuca parecia ter medo de todos. Não gostava de contato. Se alguém se aproximasse, ele se retraía.“Ele era como um bichinho assustado. Tinha até um quadro de agressividade, embora nunca tenha agredido ninguém fisicamente”, conta a assistente social Lane Cardoso. Muito debilitado, também não conseguia realizar algumas atividades básicas. Precisava que alguém o acompanhasse em tudo. Não conseguia tomar banho sem ajuda, nem se alimentar sem o auxílio de um dos profissionais da Osid. 

Samuca não costuma falar. Ao longo de toda a sua história em Ondina, ninguém sabia se ele não conseguia, ou se não queria. Agora, no centro geriátrico, a comunicação é praticamente restrita a ‘sim’ ou ‘não’. Quando o encontramos, descansava no quarto, mas, mesmo assim, aceitou um café. A equipe que o acompanha explicou: ele nunca rejeita café. 

Em um dado momento, quando foi perguntado sobre seu nome, Samuca deu a resposta que pode ser a chave para desvendar o mistério de sua identidade e sua história. Samuca revelou que se chamava Samuel Ramos. Algumas semanas antes, ele disse o mesmo nome à assistente social. 

Fora isso, não quis mais conversa. Em um dado momento, pareceu ignorar aqueles à sua volta. Quando o café acabou, voltou a recostar na cama de onde nunca levantou. Fechou os olhos e foi a deixa para que a equipe continuasse explicando: sempre que sai do refeitório, ele volta para a cama. Não costuma ficar muito tempo fora. Mesmo assim, eles comemoram.“Hoje, ele sai do leito sozinho, vai ao banheiro, vai ao refeitório na hora”, conta a enfermeira Normaci Teodora. Samuca não é assim só com os profissionais. Vivendo em um quarto com oito leitos, também não costuma interagir com os outros sete moradores. Não incomoda ninguém, mas não tem amigos. O dono do leito ao lado, o 569, respondeu que os dois não têm nada em comum. 

Evolução rápida Mesmo assim, cada dia é considerado uma vitória pela Osid. Para a assistente social Lane Cardoso, a evolução de Samuca – em pouco mais de um ano e um mês –, é surpreendente. Muito mais rápido do que esperavam para alguém que viveu nas ruas por pelo menos três décadas. “Tivemos um paciente que demorou mais de 15 anos para socializar”, cita. 

No mês passado, Samuca participou do evento mensal promovido pelo centro. Com outros moradores, foi jantar em uma pizzaria no Dique do Tororó – de forma voluntária, já que os pacientes da Morada são convidados, mas não têm obrigação de participar. “A gente trabalha para ressocializar, reabilitar e devolver ao indivíduo a sua cidadania”, afirma a coordenadora do centro, Terezinha Pacheco. As atividades vão desde banho de sol a artesanato. Samuca, no centro, foi à pizzaria com uma camisa do Bahia (Foto: Osid/Divulgação) No dia da pizzaria, usou uma camisa do Esporte Clube Bahia. A camisa, segundo Maria Rita, foi um presente do ex-presidente do time, Marcelo Sant’Ana.

“Ele (Samuca) fala baixo, mas fala. Na rua, ele não falava, mas, aqui, perguntamos se ele era Bahia ou Vitória e ele respondeu. E lá, muita gente sabia que ele torcia para o Bahia”, conta Maria Rita. 

Em 27 anos, ela própria só conseguiu conversar com Samuca há três, em uma situação específica. Estava na Orla de Ondina quando o encontrou. Procurava café. Maria Rita, então, foi a uma lanchonete e voltou com um café e um misto quente. Ele aceitou o café, recusou o misto.“Perguntamos se ele queria voltar para Ondina, ele disse que não. Parece que se sente seguro aqui”, comentou. A vida nova  No centro, ele mantém uma rotina. “Senta sempre no mesmo lugar no refeitório: de costas para a televisão”, conta a fisioterapeuta Ana Luiza Azevedo. Duas vezes por semana, Samuca passa por sessões de fisioterapia para ter mais estabilidade – especialmente ao andar.

Ana Luiza ainda tem um objetivo: fazer com que ele participe de um grupo de musicoterapia. Até agora, ele não conseguiu passar mais do que cinco minutos na reunião. 

A verdade é que Samuca tem evoluído de forma individual, mas ainda tem dificuldades para se relacionar em grupos. A coordenadora Terezinha diz que eles esperam que esse aspecto também mude. “Ele é só. A gente quer tirar ele dessa solidão, desse isolamento”. No entanto, ela sabe que o trabalho é árduo. 

No fundo, todas ali sabem que a recuperação pode acontecer a passos lentos. Apesar disso, vislumbram um futuro diferente para o morador ilustre. “Vamos fazer os documentos de Samuca, para que ele possa se tornar um verdadeiro cidadão e se reconectar com o mundo”, diz a assistente social Lane Cardoso. Samuca ao lado de Maria Rita e de funcionário da Osid: acolhimento  Foto: Acervo Pessoal A Osid pediu ajuda ao Ministério Público do Estado (MP-BA) para localizar eventuais documentos de Samuca, já que a própria entidade não conseguiu encontrar nada sobre seu passado. Se, de fato, nenhum documento ou histórico for conhecido, tudo será feito do zero. 

Samuca, que ninguém sabe se realmente nasceu em Salvador como diz ou se tem os 70 ou 80 anos que aparenta, vai nascer de novo. Vai nascer como o Samuel Ramos que talvez tenha sido um dia, mas vai continuar sendo o personagem principal das memórias de milhares de estudantes, moradores ou simplesmente pedestres que passaram por Ondina nos últimos 30 anos.

Há quem diga que Samuca era um professor de Matemática que, de tanto corrigir prova, enlouqueceu. Outros contam que, com certeza, ele fora um combatente na guerra do Vietnã que teve estresse pós-traumático, e outras versões que garantem que Samuca era cobrador de ônibus, mas teve um caso com a mulher do chefe. O patrão, com a dor dos traídos, teria sido o responsável pela ida dele para as ruas, depois de espancá-lo. 

Como Maria Rita, da Osid, ou como a repórter, cada um tem uma história com ele.